Paul Newman visto por José Manuel dos Santos...
Os grandes actores de cinema vivem um eterno retorno, sabendo que cada imagem sua regressará um dia: o presente é-lhes sempre futuro e o futuro, passado. Foi para tentar quebrar esse círculo fatal, esta condenação a ser o que se foi, que, uma vez, Paul Newman publicou um anúncio num jornal a pedir ao público para não ver o primeiro filme em que entrou The Silver Chalice, que passava na televisão vinte anos depois de Victor Saville o ter realizado. Ele próprio não o via: envergonhava-se de o ter feito e pedia desculpa por isso. Esse gesto mostra bem o inferno do actor que fica preso a uma imagem como a um fogo que o devora eternamente. Para o actor, cada papel transforma-se na pedra que carrega repetidamente até ao cimo da montanha.
Newman tinha uma cintilação física que cegava quem o via para o que não fosse ele. A luz azul do olhar num rosto esculpido por um Fídias genético e a perfeição do corpo poderiam tê-lo tornado prisioneiro da sua beleza: um boneco animado que passaria a vida a fazer papéis de gladiador romano. Ele pressentiu o perigo ("um corpo sem nome") e preveniu-o, exigindo de si que o trabalho do actor levasse sempre a melhor sobre o resto. Costumava dizer que não tinha uma arte intuitiva, e era verdade. Tudo nele era resultado de um esforço, de uma técnica, de uma composição, de uma construção. Mas tudo feito com uma sabedoria que escondia os andaimes e mostrava o edifício.
Além disso, para que o risco fosse mínimo e a prevenção total, escolheu personagens que lhe usassem a imagem física, mas que a pusessem em causa, a ameaçassem e, no limite, quase a destruíssem. Para atingir esse alvo com precisão, Tennessee Williams serviu-lhe bem. Aqueles homens belos e atormentados, tumultuosos e fracassados, viris e ambíguos que vivem contra eles próprios e contra o mundo foram-lhe um terreno onde ele ergueu o seu esplendor acossado. Começando por ser o que apanhava os restos de James Dean, tornou-se amigo de Marlon Brando, que lhe foi sombra e desafio.
Depois de, durante a infância, ter visto alegremente as fitas que então os miúdos viam, o meu primeiro filme de "adulto" tinha o nome de Paul Newman a abrir o genérico. Chama-se Do Alto do Terraço (From the Terrace) e vi-o no Tivoli. Estava classificado para maiores de 12 anos, mas eu teria apenas 10. Fiquei deslumbrado e, nessa noite, as imagens, as luzes, os sons não me deixaram dormir. Passada em Wall Street, a história parecia destes tempos de crise ("esta selva é pior do que a dos gangsters") e levou-me a outros mundos, outras vozes. Ele contracenava com a mulher, Joanne Woodward, num papel em que fazia de empresário aeronáutico. Tudo no filme era bonito: os actores, as roupas, os ambientes, os "décors", as paisagens. E tudo no filme era feio: os golpes, as traições, as trapaças, as vilanias, as fraudes. Quando no ecrã apareceu "The End", eu era outro. Nunca mais revi esse filme, que passou a fazer parte da minha mitologia privada. Várias vezes o procurei encontrar em DVD, sem conseguir. Sei hoje que o filme não é uma obra-prima, embora então me tivesse parecido. Por isso, com a memória que dele conservo, talvez seja melhor, afinal, não me reencontrar com ele. Mas também sei que, se puder, não resistirei a isso...
Mais tarde, fui vendo muitos outros filmes em que entrou, alguns inesquecíveis. Fascinou-me sempre o modo astuto como soube envelhecer ("ninguém continua jovem") e a escolha de papéis em cada idade. E por detrás do actor que se fez contra a facilidade da sua beleza e do realizador que resolveu arriscar havia o homem com convicções e com humor, o cidadão com consciência política, o cozinheiro, o piloto de automóveis.
A morte de Newman, neste momento vital para os Estados Unidos e para o mundo, deixa-nos mais entregues aos seus filmes, às suas imagens, às suas memórias. Tudo o que é dele diz-nos que depende de nós não estarmos num mundo em que todos digamos a todos as palavras que Maggie (Elizabeth Taylor) atira a Brick (Paul Newman) em Gata em Telhado de Zinco Quente: "Nós já não vivemos juntos. Dividimos apenas a mesma gaiola." (in Expresso)
Assim vai o mundo...
segunda-feira, outubro 06, 2008
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2 comentários:
Vi-o n'A Cortina Rasgada de Hitchcock. Fazia "par romântico" com a Julie Andrews... imaginas a loucura... ver a freirinha Maria com o Paul... Mas adorei o filme.
beijinhos
maria, o homem tem belos filmes...:D
Beijo
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