José Manuel dos Santos sobre o frio...
Com tanto frio que tem havido, do céu desceu a neve sobre um país que quase a desconhece, gerando atribulação e alegria. Semear na neve os nossos passos é selar um acordo com o tempo, que tudo leva e desfaz na sua mudança invencível. Mas quem vê, pela primeira vez, aquele branco lunar sobre a terra recorda todos os sonhos e todas as imaginações que dela fez sem nunca a ter visto. E lembra a escrita que sobre a neve caiu ao longo dos séculos, como se fosse o seu único rasto que não se desvanece. Há poucas palavras tão leves como esta e raras existem também que, como ela, façam à sua volta um silêncio tão puro e intacto.
Diz-se "neve" e ficamos a olhar para ela e para o seu clarão - ou para a sua ausência, vendo-a como se estivesse presente. Ao dar o título "Snow" (Neve) a um dos seus livros, Orhan Pamuk teve a certeza de que assim garantia haver mãos a abri-lo nas livrarias para saberem que outras palavras nele se juntam àquela palavra facial e branca. E a 'Balada da Neve', de um Augusto Gil que viveu na Guarda, foi uma das músicas da infância de muitos de nós. Aquele início ("Batem leve, levemente") que vai até àquele final ("Cai neve na Natureza/ e cai no meu coração") ainda hoje nos faz correr ao encontro do que fomos. Em Lisboa, a neve ameaçou, mas não veio, fazendo dela, mais uma vez, a cidade em que tudo quase acontece sem acontecer.
O frio é a altivez do tempo. Muitas vezes, é mesmo a sua insolência. Nestes dias de frio, em que se espera dele apenas desistência, fuga ou fim para que a vida possa continuar, sentimos a humilhação de nos submetermos ao gume da sua espada, como acontece em certos quadros de Caravaggio. Ou, então, vamos a correr, tremendo, arrepiados, para junto do fogo, ou do calor que o substitui sem chama nem fulgor.
O frio cresceu e fez vítimas. Do calor, que também é mau no seu cume, nenhum evangelho nos defende. É da fome, da sede, do frio e do pecado que todos nos querem defender, como se fossem excessos sem simetria. Mas no frio há uma dureza que também é uma pureza primordial. Andamos na rua e o fumo da nossa respiração lembra-nos que somos animais lançados numa natureza que esquecemos e nos persegue.
Para os grandes românticos, não há noite sem frio. Uma e outro dão ao homem um abrigo, que sem a esperança da morte é um lugar sem lugar. Penso que Luís da Baviera, quando se encontrava com a prima Elisabeth da Áustria sob o frio azul e aéreo de que Visconti fez a atmosfera do seu filme, sentia que nada valia mais do que um tremor de alma no corpo, a suportar as palavras gentis e alucinadas que diziam um ao outro. Por isso, gostavam tanto de citar Heinrich Heine e os seus versos acesos sobre o frio escuro. Eu vi uma vez, cercadas de nevoeiro e de gelo, as esculturas de Rui Chafes no Monte da Lua, em Sintra: citei Novalis e olhei todos os fantasmas que enchem a Terra de uma população que nenhuma estatística conta e nenhum governo governa.
Depois de ver o frio, escutei o seu som: alto, agudo, contínuo e cruel como uma dor de dentes. Nestes dias gelados, fui ouvir um concerto de órgão e canto a uma igreja e o frio que subia das lajes do chão encontrava a voz dos cantores e fundia-se nela, desfazendo-a e desfazendo-se.
Cesário Verde, no poema 'Cristalizações', fez seu o corpo físico, quotidiano e laboral do frio: "Faz frio. Mas, depois duns dias de aguaceiros,/ Vibra uma imensa claridade crua./ De cócoras, em linha, os calceteiros,/ Com lentidão, terrosos e grosseiros,/ Calçam de lado a lado a longa rua./ Como as elevações secaram do relento/ E o descoberto sol abafa e cria!/ A frialdade exige o movimento;/ E as poças de água, como em chão vidrento,/ Reflectem a molhada casaria." Stendhal tornou o frio a vera efígie do calor, ao achar na cristalização dos ramos nus das árvores a imagem do amor, dizendo que também ele cristaliza aquilo que o gera, através de "uma operação do espírito que tira de tudo o que se apresenta a descoberta de que o objecto amado tem novas perfeições".
Faz frio e os velhos têm medo de morrer. Com o frio que faz, as nossas mãos ficam ainda mais atadas aos seus gestos. Talvez seja por ter visto isso que o cinema gosta tanto de mãos que são sombras presas a uma luz ameaçada. (in Expresso)
Assim vai o mundo...
quinta-feira, janeiro 22, 2009
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