quarta-feira, abril 29, 2009

O mundo dos jornais...

Boa edição da Única de Sábado sobre a Rua da Democracia... A propósito, fica aqui o texto de José Manuel dos Santos sobre o dia 25 de Abril de 1974.

O dia
Os grandes dias são os que parecem mais pequenos. Neles, o tempo passa sem nos lembrarmos de nós, senão para repararmos nisso. Nesse dia, ele dormia quando, ainda era muito cedo, o telefone tocou. Ouviu-o tocar, mas não se levantou para o atender. Tinha-se deitado tarde, já o barco da noite passara o meio do seu mar, e queria dormir durante a manhã. Nas demoradas horas do antes de adormecer, esteve a ler um livro que se lhe tornara o corpo do seu corpo. Há livros assim: puxam-nos para um túnel de que não conseguimos sair a não ser no fim. Por isso, naquele princípio do dia, ele dormia e queria continuar a dormir.
Mas o telefone voltou a tocar e ele voltou a não se levantar para o atender. O tempo ouvia-se no tiquetaque do relógio que o media. A irritação despertava-o, mas ele fazia tudo para separar a causa do seu efeito. Deu uma volta na cama, tentou adormecer de novo e, quando o corpo já se entregava ao sono como a um algoz, o telefone tocou outra vez e ainda mais outra vez. Lançou então o lençol contra o mundo e, de um salto, levantou-se. Pelo vidro, olhou a manhã e viu que havia uma chuva ameaçada. O telefone parou de tocar e enfureceu-o, assim antes o enfurecera por não ter parado de tocar. Ficou à espera, à espreita. Mal soou a campainha, levantou o auscultador com o gesto de quem acha o que procura. E ouviu a voz de um amigo a contar-lhe, sem fôlego, o que estava a acontecer.
Atirou o auscultador contra o telefone e atirou-se contra a água do duche. Vestiu a roupa da véspera e correu para as ruas e praças, onde havia já gente a olhar com olhos fixos de ansiedade. Esqueceu-se então de tudo, menos do que estava a ver. Disso, nunca mais se esqueceria.
Viu os tanques e os soldados. Viu pessoas a avançarem e pessoas a recuarem. Viu gente a aparecer e gente a desaparecer. Viu, viu, viu - e quis ver para acreditar, São Tomé de um prodígio, de uma ressurreição, de uma revelação, de uma revolução.
Andou sem parar, excepto quando o pararam. Nunca tinha sido tão ágil, tão agudo, tão atento, tão oblíquo, tão íngreme, tão perspicaz, tão pérfido, tão persuasivo. Nunca tinha experimentado tanto a fusão do espaço com o tempo.
Ao princípio, não conseguia entender bem as regras daquele jogo de vida e de morte. Não conhecia quem era quem. Não compreendia de que lado estava o quê. Não sabia quem estava a ganhar, quem estava a perder. Não percebia o que decidia a vitória. Não tinha a visão do tabuleiro e do seu xadrez. Por isso, enquanto as horas passavam sem ele dar por elas passar, correu da Praça do Comércio para a Rua do Arsenal, da Rua do Arsenal para a Rua do Alecrim, da Rua do Alecrim para o Largo do Camões, do Largo do Camões para o Chiado, do Chiado para a Calçada do Sacramento, da Calçada do Sacramento para o Largo do Carmo.
Aí chegado, ficou a ver o que mais tarde toda a gente viu. Ficou a ouvir o que depois toda a gente ouviu: a multidão a falar baixo, depois a falar alto, depois a falar ainda mais alto. Ouviu a voz que vinha da árvore: Francisco Sousa Tavares, na sua rouquidão megafónica, proclamava a gravidade, o sentido e o risco daquele acontecer. Ouviu as ameaças e os tiros. Ouviu o silêncio e o seu ressoar. Viu sair do quartel, já a luz se fechava, o chaimite, cercado por mãos que queriam erguer-se aquém da vingança, além do medo. Ouviu e viu tudo isso, mas só realizou o que tudo isso era mais tarde. Reparou, nesse mais tarde, que se tinha esquecido de almoçar e de jantar, que não comia nada há vinte e quatro horas. Foi o momento em que a realidade lhe chegou e, com ela, a alegria. E o choro. E o riso.
Nessa noite, não dormiu: só sonhou. Levantou-se antes de a madrugada vir e saiu outra vez para a rua. Durante esse novo dia, durante os novos dias que se seguiram a esse novo dia (mas todos pareciam o mesmo dia), caminhou e não conheceu nem a pausa, nem o cansaço. Como ele, as pessoas andavam sem pôr os pés no chão. Com elas, voou para a Rua da Misericórdia, foi à António Maria Cardoso, correu a Palhavã. À noite, passou no Rossio e viu o Mário Cesariny, de máquina fotográfica levantada em frente da cara, a fotografar um marinheiro que sorria, primeira imagem da Aliança Povo-MFA. Viu mais. Mais. Muito mais.
Todos esses sítios foram dias e todos esses dias foram sítios. Por isso, quando passa nesses sítios, em dias que lembram esses dias, sente sempre o regresso de uma alegria inextinguível. Mas, às vezes, vê também a tristeza saltar sobre essa alegria.

José Manuel dos Santos
Colunista regular do "Actual"


Assim vai o mundo...

2 comentários:

Maria disse...

Devias era ter comprado também a versão censurada da Visão, cheia de riscos azuis. Fez-me sentir grata pela liberdade que tenho em dizer tudo o que quero.

Francisco del Mundo disse...

Maria, pois, mas também sei que há por aí muita gente a querer restringir a liberdade..:D
Beijo