Crónica de José Manuel dos Santos de Sábado no Expresso! Um dia hei-de saber escrever crónicas assim...
Rua
Agora, há sol. Andamos sob o seu calor leve, mas logo a seguir sentimos o frio da sombra. Depois, a luz volta a surgir, roda sobre si mesma, e vemos a sua fuga. Agora, há vento, um vento vindo do vazio, aberto e alto. A seguir, fechado e baixo. Agora, há calma, e a quietude não se desfaz durante horas. Mas depois o vento vem outra vez e atira-se contra nós.
Nestes dias tão instáveis e imprevistos como a vida, os nossos sentidos ficam mais despertos, mais atentos, mais minuciosos. Assim fazem os animais que, na floresta, espiam os sinais, nós espreitamos o mundo. Mesmo dentro de casa, escutamos os ruídos, olhamos através da janela. Quando ouvimos a chuva bater nos vidros, sentimos o arrepio de a imaginar e o consolo de a não sentir. Mas tudo dura pouco. De repente, o sol reaparece e a terra fica seca. Resta apenas o peso das gotas sobre os ramos baixos das árvores. Eu vejo-as e sei que em breve desaparecerão. E há em mim uma tristeza pequena, que não chega a dizer o seu nome.
Neste momento, chego à janela e olho a mulher lenta que passa na rua. Conheço-a mal, mas conheço-a bem. Tem no rosto o resto de uma beleza que se despegou dela como uma máscara que não lhe pertencesse. É agora que ela coincide consigo. Vive sozinha. Compra todos os dias o que come. É esse um motivo que se dá para sair de casa e vir à rua. Aquela viagem de poucos metros excita-a mais do que as frequentes idas a Paris, a Berlim ou a Nova Iorque de um vizinho do prédio ao lado do seu. O que esse faz obriga-o a viajar com uma rotina e uma pressa que lhe desfazem a viagem. Ao contrário, a mulher dá aqueles passos diários como se fossem os de uma exploradora do sertão. Descobre sempre tesouros. Sai de casa, olha o céu e o chão. Repara se o lixo foi bem recolhido durante a noite, ou se ficaram vestígios. Quando os descobre, murmura palavras, e no seu balbucio há raiva. Furtiva como uma caçadora, observa quem está à janela e começa a tirar conclusões. Cada passo que dá na rua é um passo numa investigação policial a que ela procede. Todos os sinais, todas as presenças, todas as ausências contam-lhe uma história e ganham um sentido.
Agora, entra nas lojas. Primeiro, na padaria. Depois, na mercearia. A seguir, no talho. Compra apenas o quase nada de que precisa para cada dia. Troca palavras cansadas com os que a aviam: "Tratem-me bem, que eu sou aqui freguesa há cinquenta anos. Já a minha mãe o era..." Nunca foi a um hipermercado. Ouve falar disso como ouve falar dos tufões da Ásia. Desconfia das pessoas que lá vão e que vêm carregadas de compras. Observa-as a tirar sacos e sacos dos carros. Olha estupefacta a quantidade de embalagens, garrafas, baldes, embrulhos. Acha toda essa gente excessiva, gastadora, voraz, perdida. E diz: "No meu tempo, não havia este esbanjamento, este desperdício, esta loucura..." Perturbam-na as pessoas que estão sempre a comprar roupa. Pergunta, numa pergunta que já tem em si a resposta: "Para que precisam de tanta roupa, se têm só um corpo?!"
Com as compras feitas, regressa à rua. Cruza-se com as vizinhas. A umas, olha-as sem as olhar, fingindo que não as vê. A outras, diz graças para meter conversa. Param no meio do passeio. Apontam para várias casas. Contam histórias, propagam rumores, revelam segredos. Repetem: "Consta-se que... Ouvi dizer que..." E ali ficam a conversar, enlevadas, ávidas, astutas. Despedem-se. Ela anda mais uns passos. Pára outra vez, como se estivesse a descansar. Está à espera de outra vizinha, que avança na sua direcção. Esta chega ao pé dela, mas não pára. Faz um gesto de pressa: "Tenho uma coisa para lhe contar. Mas só amanhã..."
Recebe estas palavras com uma contrariedade que lhe torce o rosto. Continua ali parada, até que passe outra. Passa. Pára. A conversa pega. Esta é mais nova, faz gestos exuberantes, altivos. Mostra uma pulseira que comprou. Aponta para uma janela. Ri à gargalhada. Ela ri também, mas com um riso mais baixo, curto. Continuam a conversar. Ela faz que sim com a cabeça. A outra faz que não. Antes de irem embora, apontam as duas para o céu. O sol deixou de brilhar. Voltou o vento. Ela caminha para casa. Anda mais depressa, depois mais devagar. Apoia a mão na parede. Subitamente, começa a chover. Abriga-se debaixo de uma varanda. Tem os óculos embaciados. Limpa-os com um lenço sujo. Espera com uma cara aflita. A chuva passa. Continua a caminhar para casa. Antes de entrar, vê a vizinha do prédio ao lado sair com um novo amigo.
Dirigem-se para o carro. Acariciam-se. Ela escandaliza-se e já ganhou o dia. Entra na escada, os sacos parecem-lhe ainda mais leves. Acha que o mundo está perdido, mas o achar isso abre-lhe o apetite...
Assim vai o mundo...
quarta-feira, outubro 21, 2009
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