sexta-feira, dezembro 10, 2010

O mundo das crónicas...

Já tinha pensado escrever um texto sobre Sá Carneiro (até porque há alguns pormenores importantes que se relacionam com a minha vida privada), mas para já abro alas a um cronista que venero: José Manuel dos Santos.

Sá Carneiro era um político. Agia com ímpeto, surpresa, desafio, ambição, pathos. Usou os meios, os símbolos, as palavras da política. Afirmou e negou. Atacou e foi atacado. Desconfiou e desconfiaram dele. Olhá-lo é olhar uma vida política acabada antes do fim. Nesse tempo, a política era também a escrita dela. O jornal que tornava as minhas palavras dos outros não era, em política, o que eu era - nem o que sou, pois sou o que era. Os seus leitores gostavam mais desse homem do que da liberdade com que eu o atingia. Gostavam até mais dele do que deles próprios. Por isso, sempre que, vindas de mim, surgiam, sobre ele, objeções, ironias ou reparos, recebia uma multidão de cartas escritas com a letra desmedida da injúria ou da ameaça. Tinha, assim, uma medida infalível da sua força: a que me era dada não por ele mas pelo vigor exaltado dos que o defendiam e idolatravam.

Um dia, estava no ateliê do Mário Cesariny, na Calçada do Monte, ao qual se chegava por um pátio-labirinto, e bateram à porta. Eram os dois: ele, pequeno, pontual e cortês; ela, loura, fria e etérea. Sá Carneiro e Snu queriam comprar um quadro (a Maria João Avillez contou isto, há muitos anos, num livro agora reeditado). Entraram e sentaram-se naqueles sofás que se desfaziam. Falámos de literatura, de música, de pintura, enquanto bebíamos whisky em copos manchados de pó. Ao despedir-se, Sá Carneiro deu razão a uma crítica que lhe fizera. Tive assim uma prova de que os deuses são mais lúcidos do que os seus fiéis...

Outras vezes, estive com ele quando ele estava com a Natália Correia. O que neste homem mais se ia dando a ver era a mudança que o tornava mais sereno, mais sóbrio e mais seguro. O amor da bela editora dinamarquesa revelava-o a si mesmo. A vida deste 'burguês do Porto', irrequieto e com assomos camilianos, foi, no corpo e no espírito, a fuga à fixidez de um meio e das ideias dele. Das origens familiares à ala liberal, dos cursos de cristandade à vida com Snu, deu-se uma abertura de olhar, de gosto, de imaginário, embora a atitude psicológica permanecesse. Existia ali um paradoxo escondido: os seus mais ferozes apoiantes queriam que ele fosse cada vez mais aquilo que ele era cada vez menos. O Portugal que amava Sá Carneiro não era o Portugal que Sá Carneiro amava. Ele não desconhecia este equívoco: era-lhe interior, existencial. Num livro severo, "Os Meninos de Ouro", diz Agustina: "Todos queremos ser o que não somos." Às vezes, para sermos o que queremos ser, acrescento eu por ela.

Em Portugal, os mortos são sempre melhores do que os vivos. Sá Carneiro era um político. Agia com ímpeto, surpresa, desafio, ambição, pathos. Usou os meios, os símbolos, as palavras da política. Afirmou e negou. Atacou e foi atacado. Desconfiou e desconfiaram dele. Olhá-lo é olhar uma vida política acabada antes do fim, que teve acertos e erros, vitórias e derrotas. Torná-lo herói ou vítima é desconhecê-lo.

Quem era, afinal, Sá Carneiro? Um homem que quis a liberdade e um político que desejou o poder - e ambos alcançou. Foi primeiro-ministro durante poucos meses e o que sobretudo fez foi preparar a eleição próxima. O tempo deu-lhe tempo para ser um político eficaz e voluntarioso; não lhe deu tempo para ser um reformador ou um homem de Estado.

Ele aprendeu que a história é uma ficção controlada. Agia como quem desperta para fugir de um pesadelo: em sobressalto. Para ele, a política fazia-se de pulsão e atrito. De conflito, corrosão, contenda, colisão. O risco, a rutura, a recusa e o rasgo eram as maçãs de ouro do seu jardim das Hespérides. O seu exército foi o da coragem, mesmo quando a sua coragem não era serena e se confundia com a impaciência ou a vertigem. A coragem não é a mais alta, nem a mais bela, nem a mais rara das virtudes humanas. Mas é a mais necessária e a mais útil: aquela sem a qual todas as outras virtudes se enfraquecem, desfazem ou anulam. Arquimedes dele próprio, Sá Carneiro encontrou em si o ponto onde aplicou a alavanca com que ergueu o seu mundo. Agustina fala de narcisismo. Mas é disso que os mitos modernos se fazem.

Naquela noite, eu jantava num restaurante ao Bairro Alto. Alguém gritou: "O avião do Sá Carneiro caiu! Morreram todos." Era verdade. Telefonei a Mário Soares e ele queria saber mais e mais. O que se soube, foi-se sabendo - nessa noite, nos dias seguintes, nos meses seguintes, nos anos seguintes. E houve coisas que nunca se souberam, que nunca se saberão. Aquela queda do avião é um mistério e a persistência dele uma vergonha. Ao desastre ou ao crime somou-se outro desastre ou outro crime. Na noite daquelas mortes, escrevi uma crónica. Falava de Pedro e Inês e esta imagem fácil teve a fortuna de ser usada por outros.

Passam agora 30 anos sobre esse dia noturno. Têm-se publicado muitos livros, mas poucos dizem o que não se sabia antes deles. Sá Carneiro, que teve a experiência frequente da doença, previa a sua vida breve. Viveu-a contra o tempo: com intensidade, destemor, paixão. A sua morte não o desmentiu. Mas desmente aqueles que fazem dele o que ele não foi.

José Manuel dos Santos

colaborador regular do "Atual"

Texto publicado na revista Atual de 4 de dezembro de 2010


Assim vai o mundo...

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