segunda-feira, setembro 14, 2009

O mundo dos jornais...

Luis Fernando Veríssimo escreve crónicas geniais! Pequenas estórias sempre com uma moral. Esta é a sua crónica de sábado no Expresso...

Zum

O professor concluiu que a Sandrinha tinha sido posta no mundo para enlouquecê-lo quando ela declarou que lia na diagonal. Não bastava Sandrinha passar a aula fazendo e desfazendo o nó que mantinha seu cabelo preso atrás, agora aquela. Lia na diagonal.

- Como, na diagonal, dona Sandra?

- Na diagonal. Em vez de linha por linha. Começo na primeira palavra da primeira linha e desço, zum, até a última palavra da última linha da página. Em diagonal. Poupa tempo.

O professor sacudiu a cabeça. Como se tivesse levado um soco e tentasse clarear o cérebro.

- Como assim, poupa tempo?

- Por exemplo - disse Sandrinha, desfazendo e refazendo o coque -, "Os Irmãos Karamazov".

O professor não estava acreditando no que ouvia.

- A senhora leu "Os Irmãos Karamazov"?

- Li todo. Zum, zum, zum. Em quarenta minutos.

- Mas dona Sandra..,

- O senhor leu "Os irmãos Karamazov", professor?

- Não. Quer dizer, li. Há muito tempo.

- Então me pergunte qualquer coisa sobre o livro.

O professor não se lembrava muito bem do livro. Na verdade, só se lembrava de uma frase, dita por um dos irmãos. Se Deus não existe, tudo é permitido. A frase precisava ser revisada. Se o método de leitura da Sandrinha existia, nada mais tinha sentido. Se ler na diagonal funcionava, significava que 80 por cento - mais, 90 por cento! - do conteúdo de uma página era supérfluo. A própria literatura estava ameaçada. Para não falar, pensou o professor, na minha sanidade mental.

- E "Guerra e Paz", a senhora leu?

- Li. Em uma hora.

- Que mais?

- "Ulisses".

O professor deu uma risada.

- Está bem, dona Sandra. Vamos deixar de brincadeira. Não vá me dizer que entendeu todo o "Ulisses".

- Entendi tudo. Na diagonal, simplifica.

- Dona Sandra...

- Aposto que eu já li mais livros do que o senhor professor.

E Sandrinha desfez e refez o nó do cabelo outra vez, olhando o professor com malícia.

- O que a senhora faz não pode ser chamado de leitura, dona Sandra.

- Por que não? Leitura dinâmica. Zum, zum, zum, e pronto. Tá lido.

O resto da classe se divertia. O professor sentiu que precisava restabelecer sua autoridade.

- Isso é ridículo. Um livro tem que ser degustado, palavra por palavra. O seu método reduz qualquer livro a, sei lá. A um fast-food, a um...

- O senhor leu "Os Sertões", professor?

- Li!

- Inclusive a primeira parte? A parte chata?

O professor não tinha lido a parte chata. A Sandrinha provavelmente lera a parte chata, na diagonal, em meia hora. O professor não podia lhe conceder aquela vitória. Antes que ela dissesse "Eu li", ordenou:

- Por favor, pare de mexer nesse seu cabelo!

E encerrou o assunto.

O consenso na classe foi: mais uma vitória da Sandrinha. Que no primeiro dia de aula já tinha convencido o professor a deixá-la usar a camiseta com "Abaixo todas as calças!" escrito na frente.


Assim vai o mundo...

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