José Manuel dos Santos sobre Jorge de Sena, no Expresso de Sábado!
Ao contrário dos ossos daquele Camões que se dirige aos seus contemporâneos no célebre poema ("Nada tereis, mas nada: nem os ossos, /que um vosso esqueleto há-de ser buscado,/ para passar por meu."), os ossos de Sena passarão por nossos, porque ele assim o quis. Num tempo em que os símbolos foram trocados por gadgets, não sei se é possível falarmos ainda da força simbólica que tem a vinda para Portugal dos despojos mortais de Jorge de Sena. Ao encontrar aqui um abrigo, esse pó quase extinto dá corpo a um regresso demasiadamente adiado. O nome de Sena num cemitério português inverte a sua ausência - não para nos aliviar de uma culpa, mas para nos culpar de a não termos tido.
A ausência de Jorge de Sena num exílio gritado, ao mesmo tempo indesejado e desejado, tornou-se o epicentro do sismo contínuo que eram a sua obra e a sua vida. E foi também esse, frontal ou obliquamente, um dos temas da cultura portuguesa da segunda metade do século XX. Sena tornou-se a estátua do Comendador que, de tempos a tempos, vinha assombrar a paz pobre da terra triste. Alguns viam nisso uma exibição, um vício de vaidade, uma histeria literária (por exemplo, Cesariny, Natália, Lacerda). Mas outros viveram essa ausência como uma maldição e uma derrota.
No tributo que, em 1976, lhe foi prestado, Sophia de Mello Breyner falou dessa ausência como de um mal: "Se penso em Jorge de Sena, penso nos seus poemas, mas penso igualmente na sua ausência. Pois essa ausência é como uma parte da nossa vida e do nosso país que nos roubaram. É uma forma de termos menos a pátria que temos e a vida, única, que tem. A 25 de Abril pensámos que éramos um país que se ia reconciliar consigo próprio e que se ia reconhecer. Acreditámos na transparência possível. Acreditámos que a lei da negatividade iria ser ultrapassada. A continuada ausência de Jorge de Sena também nos diz que algo não correu inteiramente bem." E, na última carta que lhe escreveu, lamenta-se ela: "Que pena morares tão longe e as nossas viagens não coincidirem. Mas espero ver-te quando o Verão vier."
O Verão veio e não o trouxe, pois a morte o levara nesse mês de Junho de 1978. Na mensagem que então enviou a Mécia de Sena, Sophia diz: "Para além do desgosto e da saudade sinto um profundo acabrunhamento. Do Jorge oiço o grande rio em cheio da sua poesia passando através do espaço e do tempo em que vivo. Sei que dificilmente existirá alguém que seja seu igual. E não me consolo destes dezoito anos de ausência que poderiam ter sido dezoito anos de convívio, de encontros, conversas, riso comum, aflições e alegrias comunicadas."
Esta ausência, em vida e em morte, de Jorge da Sena da terra portuguesa foi acusação e prova contra nós. Uma ausência que, antes do 25 de Abril, era exílio forçado, tornou-se depois exílio voluntário, com o qual ele desafiava altivamente um país que amava com ódio e odiava com amor: "Ó, terra de ninguém, ninguém, ninguém: /eu te pertenço. És cabra, és badalhoca, /és mais que cachorra pelo cio,/ és peste e fome e guerra e dor de coração./ Eu te pertenço mas seres minha, não!"
Sena era lúcido e megalómano, terno e cruel, astuto e ingénuo. A tal questão que, dizia O'Neill, cada português tem consigo-mesmo e que se chama Portugal, ele agigantou-a à altura lívida de um fantasma. O meu amigo Fernando Dacosta, quando o visitava na sua casa do Restelo, ouvia-o, juiz justiceiro, vociferar horas contra tudo e contra todos, possesso de furor e de vingança. Só depois se apaziguava e fazia da angústia uma música que se juntava à música da noite que chegava.
José-Augusto França conta que, um dia, ao vê-lo com uma insatisfação tão zangada, lhe disse: "Jorge, não vale a pena estares assim. A tua obra é tão grande que o reconhecimento chegará. Terás a glória! Se não for hoje, será para o mês que vem, ou para daqui a dez anos. Mas ela virá"! Sena ouviu-o e gritou-lhe: "Mas eu preciso da glória já, nos próximos quinze minutos".
Encontrei-o uma vez, em casa do Ruy Cinatti, num tempo em que tudo acontecia a toda a hora. Estava ele excitado, ansioso e perplexo com a Revolução. E muito inquieto com a perturbação do seu velho amigo por causa de Timor.
O que eu mais gosto em Jorge de Sena é a grandeza de quem quer chegar ao que não alcança. É a atitude inconformada e ardente perante a gravidade da vida: "Soube-me sempre a destino a minha vida." É a proximidade ao corpo, sabendo que o seu auge coincide com o auge do espírito. É a raiva insolente e excessiva, autenticamente moral porque ferozmente antimoralista.
Entre nós, está a partir de agora a memória fúnebre de Jorge de Sena, com a pouca glória que temos para lhe oferecer. Que ao menos essa presença nos acrescente do que nos falta e a ele não faltou: a violência que ordena à mediocridade que falhe.
Assim vai o mundo...
quarta-feira, setembro 23, 2009
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