quinta-feira, julho 10, 2008

O mundo dos jornais...

Mais um artigo daquele que penso ser o melhor cronista português...

Eduardo Lourenço

Todos somos heterónimos do tempo: aqueles que ele cria e destrói para nisso, e em nós, se multiplicar. Eduardo Lourenço soube-o sempre muito bem. Com 85 anos feitos há pouco, como se acabasse um ensaio e começasse outro, continua a mostrar-nos que a ave de Minerva levanta voo ao entardecer. Talvez por isso a sua escrita seja hoje mais próxima de uma lentidão aérea do que da agilidade terrestre do passado. Mas a demanda é a mesma: a das perguntas que vão ao nosso lado, não nos dando exterior. Toda a obra deste exilado do seu exílio (por isso vem tanto a Portugal!) tem sido, desde o princípio em que os olhos se abriram para o mundo, uma despedida da luz. Ele percebeu, nesses anos fatídicos, que, ao contrário de Goethe que pedia "mais luz", era imperioso pedir "menos luz", porque a que havia, de tão crua, despótica e insolente, cegava, assim na prisão o torcionário cega a vítima para a obrigar a dizer o que ele quer. A contra-luz que Lourenço reclamou era a que permitia responder sem a coacção da ortodoxia. Essa luz do avesso pode ser sombra, mas pode ser também uma luz outra, a que vai de nós para o mundo. É esse o centro da sua poética.

Ao longo dos anos, o autor de Fernando Rei da Nossa Baviera tem feito uma viagem órfica pelos caminhos que conduzem ao "nada que é tudo", de que um dia falou Pessoa, quando falava do mito. Raramente se encontra alguém com tantos instrumentos para a viagem incessante: mapas e tábuas, compassos e sextantes, binóculos e bússolas, astrolábios e radares. Essa viagem obtém soberania da sua errância, assim os reis em Shakespeare acendem a noite incerta com a sua loucura. À velocidade do crepúsculo que desce, Lourenço leva sobre os seus ombros leves o peso da história, da arte, da literatura, da filosofia, da música. Os seus livros, que são melancólicos diários de bordo da "grande viagem" que só por antecipação os pode ter, estão cheios de adivinhas respondidas com outras adivinhas.

No que de nós, portugueses, se trata, este Dédalo do Labirinto da Saudade, do qual somos os Ícaros inconstantes, foi, com uma paciência devoradora, construindo uma ratoeira de palavras para apanhar aquilo em que Portugal se diz Portugal. A sua "psicanálise mítica do destino português" constitui, afinal, a sua mais firme vingança. Atravessando o estreito desfiladeiro que tem, de um lado, a velha paralisia e, do outro, a nova fuga, chegou ao lugar de onde o labirinto se vê de cima.

Além da admiração, algumas vezes discordante, tenho por Eduardo Lourenço uma estima que o tempo permite dizer nas palavras da amizade. Se lê-lo é pensar com ele, encontrá-lo é sempre um puro prazer. Na sua conversa, há gravidade e graça, cidade e província, mundo e narrativa, texto e comentário, interior e exterior. E há uma malícia que se ri da sua pontaria fulminante. De tantas e tão grandes virtudes intelectuais que possui, há uma que é o princípio de todas as outras - a atenção subtil. Raros são os homens com uma atenção assim: tão distraída, tão fina e tão intensa. Distraída do quotidiano e das suas utilidades. Atenta ao coração do mundo.

Um dia, numa viagem sem esquecimento que fizemos à China e a Macau, ele foi, minuto a minuto, o cronista do que atravessava os nossos sentidos: os sons ocos, as cores altivas, os cheiros sujos, os sabores doces, os tecidos brandos. Comentava os deuses e os seus desdéns, os homens e os seus erros, o amor e os seus ardis, a arte e as suas superstições, a sorte e as suas falhas, a vida e os seus acasos. Falava da China que foi sempre o nosso grande Outro. E, pelo meio, falava da Roma antiga e da América moderna. Tudo dito com uma astúcia que nascia das palavras.

Neste aniversário recente, Eduardo Lourenço voltou à aldeia distante (de tudo e agora também dela própria) onde nasceu. Aí, levantou os olhos para as cruzes que se erguem no céu dos pássaros. Depois, baixou-os e encontrou a sua sombra longa na terra seca.

José Manuel dos Santos


Assim vai o mundo...

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