Luís Fernando Veríssimo é um belo cronista. As suas crónicas são sempre pequenas estórias, normalmente humoristicas, que tem o condão de nos fazer pensar. Vejam esta crónica e pensem se não há sempre duas formas de ver as coisas...
Dentes
Os dois foram colegas na escola. Amigos inseparáveis. Mas separaram-se. E um dia reencontram-se. Um bem vestido, com sinais ostensivos de riqueza. O outro mal. Mal vestido, mal cuidado, mal tudo. Abraçam-se. Que coisa! Há quanto tempo! Tratam-se pelos apelidos de antigamente. Joca e Bolão.
- Você deu-se bem, hem, Bolão? Olhe só...
- É. O meu pai fez fortuna, eu fiquei independente. Estou bem, sim. E você, Joca. O que aconteceu com você?
- Pois é... A vida...
- Não. Não me venha com essa de vida, de culpa da sociedade. Somos indivíduos, e cada indivíduo é responsável pelo seu destino.
- Então você é responsável pelo seu pai ter enriquecido e eu pelo meu ter morrido e nos deixado na pior e...
- Seus dentes, por exemplo.
- O quê?
- Não vai me dizer que seus dentes ficaram desse jeito por culpa da sociedade. Você e eu começámos com os mesmos dentes, mas eu cuidei dos meus.
- Porque você tinha dinheiro!
- Não, não. Porque eu dei prioridade à higiene bucal e você, obviamente, não.
- Olha aqui, Bolão...
Bolão levanta o livro que tem na mão.
- Sabe quem escreveu este livro, Joca? Eu. Como vivo de rendas e tenho muito tempo livre, escrevo. E eu mesmo publico. Estes são ensaios sobre os filósofos do século XVII. Onde sustento, por exemplo, que o pensamento cartesiano só se tornou possível porque Descartes escrevia em francês em vez de latim escolástico. A filosofia moderna é uma decorrência da linguagem. Descartes desenvolveu um sistema de argumentação abstracta porque saiu do latim para o francês, enquanto Bacon, por exemplo, não conseguiu fazer o mesmo com o inglês. Entende?
- Não!
- Claro que não. Bacon e Descartes educaram-se com o mesmo latim, como você e eu estivemos nos mesmos bancos escolares e aprendemos com os mesmos professores, mas depois cada um cresceu na sua própria língua. Isto é, na sua própria cultura, no seu próprio universo de referências, na sua própria sintaxe.
- Mas se os dois fossem franceses, desenvolveriam o mesmo sistema de pensamento, já que eram iguais.
- Mas os dois não eram franceses, meu caro. Portanto, não eram iguais. Um era francês e o outro era inglês. De nascimento. Não foi a sociedade que fez um francês e o outro inglês. Foi a fatalidade genética.
- Mas você e eu falamos a mesma língua.
- O português que nós dois aprendemos juntos equivale ao latim com que Descartes e Bacon aprenderam a pensar na escola. Mas Descartes estava destinado a falar francês, a língua do discernimento, e Bacon condenado ao rude inglês. Eu estava destinado a transcender o meu latim para a linguagem do saber e do empreendimento intelectual, você estava destinado a transcender o seu latim para a linguagem do ressentimento e da perplexidade, a linguagem do nada. Falámos a mesma língua na escola, depois desaparecemos dentro de nossas respectivas classes e culturas, como barcos se afastando no nevoeiro.
- Mas você acabou de dizer que cada indivíduo é responsável pelo seu destino...
- Responsável pelo que faz nos limites da sua predestinação. E, se me recordo bem, estávamos falando de dentes. Os meus são perfeitos, os seus estão podres. E isso não tem nada a ver com dinheiro, sorte ou dinâmica social, Joca. Cada indivíduo é responsável, ao menos, pelo estado dos seus dentes.
- E pelo estado dos dentes dos outros.
- Como assim?
- Eu não estou predestinado a quebrar seus dentes com um soco. Mas posso decidir quebrá-los. Como indivíduo, estarei decidindo o meu destino. Ou, no caso, o destino dos seus dentes.
- Joca, espera um pouquinho. Vamos conversar!
- Você esqueceu? Nós não falamos a mesma língua. Nenhum entendimento é possível entre nós dois.
- Espera, Joca!
Assim vai o mundo...
quarta-feira, julho 16, 2008
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