terça-feira, novembro 18, 2008

O mundo das crónicas...

A vitória de Obama vista por José Manuel dos Santos...

A vitória

"Quando há grandes perigos que ameaçam o Estado, vemos muitas vezes o povo escolher com felicidade os cidadãos mais aptos para o salvar. Já se observou que, perante um perigo iminente, o homem raramente permanece no seu nível habitual: eleva-se acima ou cai abaixo dele. Assim acontece com os povos. Os perigos extremos, em vez de levantarem uma nação, acabam, às vezes, por abatê-la; exaltam as suas paixões, sem as conduzirem, e turvam a sua inteligência, sem a esclarecerem. (...) Mas é mais comum vermos, entre as nações como entre os homens, virtudes extraordinárias nascerem da premência dos perigos. Os grandes caracteres aparecem então em relevo como esses monumentos que a obscuridade da noite escondia e que se revelam, subitamente, à luz de um incêndio. O génio já não desdenha reproduzir-se e o povo, ameaçado pelos perigos, esquece por uns tempos as paixões invejosas. Não é raro vermos então saírem da urna eleitoral nomes célebres." Estas palavras, publicadas em 1835, são o melhor comentário à eleição quase inverosímil de Barack Obama para Presidente dos Estados Unidos da América. Inspiradas por uma memorável viagem, escreveu-as Alexis de Tocqueville, num livro que recebeu o título Da Democracia na América e que permanece como um dos grandes textos políticos e culturais do Ocidente.
Tal como vinha acontecendo com a campanha eleitoral que lhe deu rosto, a vitória deste negro de uma elegância esguia e serena cobriu o mundo de palavras. Tudo se disse, e nesse tudo há o dito e o contradito. Mas o que mais se ouviu foram as palavras que se acham muito prudentes, a prevenir-nos de que à desmedida e arrebatadora ilusão deste triunfo sucederá a rápida e melancólica desilusão da sua impotência. Sabe-se que o tempo e as suas contradições dão sempre alguma razão a estes vaticínios-desejos, cínicos e sombrios. Mas curioso é que sejam os que mais assim nos previnem para as decepções futuras aqueles que nunca tiveram decepções passadas com George W. Bush, mesmo quando a mistura de estupidez infalível e de arrogância incompetente se transformou no palco onde a tragédia se tornou inevitável.

Alguns desses, que nunca quiseram nem esperaram que Obama ganhasse, enaltecem agora a América que foi capaz de o gerar. Mas já quando a América tinha gerado Bush (contra o qual, verdadeiramente, Obama ganhou), acusavam toda a gente que não o louvava de "anti-americanismo primário". Ao responder-se-lhes haver tudo contra Bush e nada contra a América que se lhe opunha, eles olhavam com o sorriso fácil de quem recusa um sofisma. Afinal, podem agora concluir, perante o entusiasmo universal provocado pela eleição de Obama, que não havia sofisma: eram os ouvidos deles que não queriam ouvir a verdade.

É claro que não devemos pedir à política o que ela não pode nem nos deve dar. Não lhe devemos pedir nem um absoluto, nem a salvação da alma, mas devemos exigir-lhe que não torne o mundo inabitável. E foi isso que Bush fez, com uma gravidade que vai permanecer por muitos anos. Não devemos pedir-lhe que nos dê uma moral privada, mas devemos esperar que nos dê uma moral pública e não, como aconteceu com Bush, uma máscara de virtudes para cobrir um rosto sem elas.

A vitória de Obama dá à América um Presidente que não é um fanático imaturo em processo de reabilitação edipiana, rodeado de tribos predadoras que fizeram da Casa Branca um caso de estudo antropológico. Esta vitória dá à América um Presidente que sabe o que é a política e para que serve, conhecendo os seus limites e os seus deveres, um Presidente que tem uma cara em vez de um esgar e que usa a fala em lugar do balbucio.

Obama apontou à vitória como o arqueiro que se mede, antes de medir o mundo, tornando-se a seta que alcança o alvo. A sua campanha foi uma obra de precisão e audácia. Este homem carismático (no sentido weberiano), convicto, disciplinado e inteligente, conhecido por ter nervos de aço, espírito prático e sentido de organização, percebeu que as mulheres e os homens só lhe dariam o seu voto se ele lhes provasse que a sua não era apenas uma vitória, mas uma mudança. Por isso, venceu. E, sob a noite que se erguia para acompanhar a altura dessa vitória, ouvimos um discurso feito das palavras que chegam e não das palavras que partem.


Assim vai o mundo...

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