quinta-feira, novembro 06, 2008

O mundo dos jornais II...

Não poderia descrever melhor esse momento que me fascina do que José Manuel dos Santos...

Tempestade

Quando saí à rua, um vento longo e curvo levava tudo consigo. Em frente, o rio alucinava-se, desfazendo a sua quietude de meses, sob uma luz crua e rápida que anunciava o temporal. As pessoas corriam para casa e, nos movimentos que faziam quando aceleravam o passo, havia uma fuga ao céu que as ameaçava. Uma mulher trôpega passou por mim, fez uma cara de temor e disse com uma voz funda e inquieta: "Fuja, fuja! Depressa! Vai chover muito e depois haverá cheia!" Eu fitei-a e acenei que sim com a cabeça, embora não soubesse se tinha razão no seu agouro.

A minha mãe, repetindo a minha avó, também é assim. Ela, que não tem medo de nada, sente pânico nas tempestades, que lhe parecem o maior perigo que o universo põe sobre nós. Altiva para tudo o resto, submete-se ao céu e ao seu poder impaciente. E depois prenuncia a catástrofe na iminência de um apocalipse de relâmpagos, raios e trovões.

Na minha infância nervosa e feliz, quando trovejava, fosse de dia ou de noite, a minha mãe desligava o quadro eléctrico e fechava as portadas de madeira. Ficava então, ansiosa e aguda, a escutar o que dava razão ao seu medo, assim um animal espreita a ameaça na floresta. O meu pai, quando era novo, tinha visto cair um raio ao lado dele e ficou na voz com o eco da voz de Zeus. Falava desse momento e eu sentia nele um susto que 50 anos depois ainda não se dissipara. Vejo ainda hoje o seu rosto assombrado a contar a história do raio.

Agora, continuo a andar à beira da água agitada e sombria. Sou apanhado na curvatura do vento e arrastado num vórtice de papéis, caixas de cartão, sacos de plástico. Digo-me: para o vento, lixo entre lixo. E, ao dizê-lo, tenho consciência de que é fácil sermos subitamente anulados e entregues àquilo que nos nega, negando a nossa vontade e a nossa força. É nessa hora que medimos a diferença que há entre o nosso avanço e o nosso recuo. É nesse minuto que, contra o mundo, aprendemos a resistir, a persistir, a insistir. É nessa altura que conseguimos fincar os pés sobre a nossa impotência, aguentando o embate e esperando que passe a causa que a gera.

O vento sobe ao seu vértice mais alto e eu procuro um abrigo. Passa um cão a uivar com o pêlo sujo. O céu está escuro e fechado, prestes a desabar, para assim se livrar da sua escuridão como alguém se livra de uma angústia, de um desespero, de uma doença. O cão aflito corre até mim, encosta-se-me sob o telheiro. Eu passo-lhe a mão vagarosa pelo corpo arrepiado e sinto-o próximo como um irmão. Então o seu uivo muda: torna-se mais grave - é um latido, depois um rumor, a seguir um respirar leve. O cão olha-me nos olhos, soletra-os, rompe-os. Há nessa procura e na pergunta que, com ela, me faz uma urgência física e uma veemência muda. Não consigo deixar de olhar o seu olhar convexo: e desfaço com a intensidade dos meus olhos o seu susto silencioso e triste.

Tudo parece agora mais sereno, mais liso. Ou sou eu que me esqueço da tempestade e da sua ameaça? Continuo ali, alheado, ao pé do cão sem dono e sem destino. De repente, começa a chover uma chuva espessa e fria, com pingos longos e grossos como cordas. É uma chuva vertiginosa, veloz, que lava o ar. No fim, o universo parece rarefeito, descongestionado como um órgão vital.

A chuva ausenta-se e, no lugar dela, o céu abre sobre nós a sua cor cansada. Avanço na estrada e o cão segue-me com a lealdade que só têm os ameaçados da mesma ameaça. Estou em face do rio horizontal e oscilante. Passa um barco leve sobre a água baixa que se aclara. A bordo, um homem de ar estremunhado olha-me e olha o cão. Nos três olhares que se encontram há uma suspeita boa.

Mas, bruscamente, e como é próprio deste nosso tempo, tudo volta a fechar-se: a luz cai e começa a chover de novo, torrencialmente. Não há abrigo próximo. O cão fica todo molhado e é o espelho do meu arrepio. Sobre nós, abre-se um clarão metálico e a seguir rebenta o trovão. Penso: tenho de me apressar, a esta hora a minha mãe está em casa cercada pelo medo...


Assim vai o mundo...

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