Há crónicas que parecem escritas por mim! Mas não são. São de José Manuel dos Santos. E que delícia as três últimas frases...
Castanhas
Depois do sol, veio o frio. Caminho na rua àquela hora em que a luz do dia já partiu e a da noite ainda não chegou. Este é o momento em que tudo começa a ausentar-se do que foi. Os prédios negam-se uns aos outros, fundem-se, soldam-se numa parede cega como a de uma fortaleza; o chão recusa-se a subir até aos nossos olhos e somos nós que o procuramos, para não tropeçar nele; as árvores, quando as há, tornam-se fantasmas vegetais (Lourdes Castro percebeu isso como ninguém); os carros correm para o crepúsculo como para uma meta. O barulho cresce, depois decai - e nasce também em nós o desejo de não sermos mais o que fomos durante o dia.
Antes do frio, havia o sol que vai longe. As luzes acendem-se nos candeeiros e dão-nos outro mundo. Tudo agora se faz de sombra clara e de claridade escura. Os corpos que se sucedem nas ruas aproximam-se, afastam-se, hesitam, chocam-se, evitam-se. Somos atravessados por sons misturados: buzinas, sinos, vozes, ruídos, apitos, pregões, gritos, e protestos. Um velho pede esmola sentado e diz que "sim" com a cabeça, quando lha dão, e diz que "não", quando lha negam, num código tão imutável e binário como uma álgebra de Boole. A missa da tarde acabou: da igreja sai gente com passos vagarosos, que só ganham velocidade após descerem a escadaria e chegarem ao passeio.
Ando e, à minha frente, duas mulheres apontam uma montra antiga onde estão escritas as palavras que prometem preços baratos. Nos seus dedos, há anéis e nos seus pulsos pulseiras que rodam. Os gestos que fazem abrem-se e fecham-se, cruzam-se, batem-se. Em sentido contrário, passa um homem que lança com fúria nomes do futebol e da política. Atira-os como se fossem pedras e a seguir agita os braços. Um funâmbulo equilibra o fogo antes de o devorar, como se fosse o Saturno dos filhos em chamas. Mais adiante, um rapaz vestido de negro mostra os seus cães amestrados: são dez numa matilha serena. De repente, vinda não se sabe donde, uma louca irrompe, anda em ziguezague, fala um inglês dos teatros de Stratford-upon-Avon. Ao lado, está o engraxador que vende livros e fala deles enquanto dá brilho aos sapatos. Sabe de cor poemas e diálogos de filmes. Andou na guerra em África, que para ele ainda não terminou. Por isso, está sempre à espera de um inimigo que o venha matar. Na parede, atrás de si, tem colados recortes de jornais com fotografias dos clientes célebres. Quando morre algum deles, assim aconteceu com o Eduardo Prado Coelho, expõe as necrologias. Um homem foi lá engraxar os sapatos e, depois de ele lhe ter falado dos mortos ilustres, levantou-se, apontou os retratos e exclamou: "Antes eles que eu!" Ouvi esta frase fria e feita como se ela fosse dita pela voz da vida.
Os mendigos e os doidos multiplicam-se. Um dá voltas sucessivas em redor de um poste e grita: "Andamos todos à volta não sabemos de quê. Mas continuamos a andar. E continuamos a não saber!" Outro veste o saco-cama onde à noite dorme. Nunca o tira! E chora quando não lhe dão esmola: "Porra, já não como há dois dias! E estes cabrões sempre de papo cheio!" Uma senhora muito bem posta, a quem se dirige, responde-lhe, ríspida: "Vá pedir ao Cavaco e ao Sócrates, esses é que têm obrigação." Ele vira-lhe as costas com um insulto sexual nos dedos.
Caminho no meio da Babel. Subitamente, aspiro um fumo bom e vem nele um cheiro de passado contente. Paro, embora continue a andar. Estou suspenso em mim: as sensações são imagens. Olho o lugar de onde vem o fumo: o de uma vendedora com o seu carro. Iluminada pelo fogo lento, ela tira as castanhas do lume. Faz um cartucho num gesto hábil, agarra-as a escaldar e põe lá uma dúzia. Eu pago-as, recebo o pacote e tiro a casca castanha escura, lisa e fendida. Começo a comê-las. Na faca do frio, cintila o gume de uma felicidade. Regresso ao que fui no tempo em que a minha avó mas dava. Continuo a comê-las, sem parar. Penso: as castanhas são as cerejas do Inverno que avança. E são como as palavras que as dizem: umas atrás das outras... (in Expresso)
Assim vai o mundo...
quarta-feira, novembro 26, 2008
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário