Tenho um fascínio pelo fogo! Talvez por ser o meu elemento natural. Um dia destes falo sobre isto, mas hoje deixo José Manual dos Santos falar sobre ele...
Fogo
Perto de minha casa, havia aquele prédio imenso, multiplicado em várias portas. Numa delas, estava o alfaiate onde o meu pai mandava fazer os fatos. Eu acompanhava-o às provas: várias, longas e metódicas. Na primeira, conferiam-se as formas e os tamanhos. Na segunda, faziam-se os ajustamentos e passava-se aos pormenores, onde dizem que Deus acaba e o diabo começa. Ensaiava-se com exactidão o alcance das mangas (o punho da camisa tinha de se ver, mas não muito) e o cair da gola. Isso era o mais difícil: a gola não podia ficar nem muito subida nem muito descida. A procura desse meio termo aristotelicamente virtuoso demorava tempo e exigia gramática. Quero eu dizer: interjeições e interrogações. E o modo como o casaco caía nas costas era também o principal. O alfaiate, quando fiz o meu primeiro fato, ainda com calções até aos joelhos, pediu-me, mas como se me repreendesse, para me pôr direito e não levantar os ombros.
Ao lado do alfaiate, era a ourivesaria. A minha mãe gostava de lá ir. De comprar o que se lá vendia e de conversar com a senhora que, com modos corteses e medidos, passava o peso do ouro das suas mãos para as mãos das visitantes, recebendo em troca notas que a faziam sorrir e ser gentil. A senhora era subtil e falava da vida como se contasse um segredo. Hoje, sei que a minha mãe procurava ali um outro ouro, mais leve e mais fugaz do que aquele: o ouro do tempo, de que falava Breton ("Je cherche l'or du temps").
Foi nesse prédio a minha primeira escola. Irrequieto e curioso, os meus pais acharam que, mesmo dois anos antes do que seria normal, era bom - para mim e para eles - eu ir para essa aula particular onde a professora aceitava alunos antes da idade legal. Tinha ela métodos infalíveis para nos ensinar a ler, a escrever e a contar. A sentença imutável e sem recurso era: cada erro, cada reguada. Eu deixei de os dar para as deixar de apanhar. Quando fiz 6 anos e entrei, noutra escola, para a primeira classe, a professora que me recebeu surpreendia-se com a minha sabedoria, sem conseguir achar a razão do prodígio... Se fosse hoje, mandava-me para os psicólogos que acompanham os sobredotados. Por desconhecimento de causa, teria cometido um grave engano...
Havia aquele prédio da minha primeira escola e das minhas primeiras lojas. Numa tarde de Agosto, quando regressava a casa, fui arrebatado por um vento vermelho que crescia e crescia e crescia. O prédio ardia: ardeu até se negar. Eu já tinha visto incêndios, mas nenhum de tão perto e nenhum tão indomável. Os bombeiros levantavam-se sobre eles próprios, exaustos e enraivecidos. Corriam, mas era como se estivessem parados. Os moradores daquelas casas extintas, ao verem que ficavam apenas com a roupa que tinham no corpo, abriam a boca e gritavam para dentro deles e para dentro de nós um desespero mais puro e mais alto do que as chamas. Esses gritos, atirados à noite trémula e iluminada, ficaram para mim como a prova de que os homens se tornam deuses e animais no perigo. Deuses, porque querem morrer e não conseguem. Animais, porque os seus uivos são selvagens, contínuos e sem vergonha.
As horas sucediam-se como reis de uma dinastia louca, e o fogo continuava a devorar tudo, atravessando o nosso pânico e quase chegando à nossa casa. Passei a noite a olhar, assombrado, o oscilar daquela treva de luz, o correr daquela caligrafia incandescente, alta e destruidora. Nas noites seguintes, era como se não conseguisse fechar os olhos, pois sonhava que eles continuavam abertos. Ali fiquei, enquanto as cinzas não trouxeram a madrugada. Ali escutei, aterrado, aqueles gritos subumanos e nus. Durante muitos meses, era como se os meus ouvidos ainda estivessem num lugar diferente daquele onde eu estava.
O fogo atravessa, inextinguível, todas as mitologias e todas as literaturas. Gaston Bechelard, em A Psicanálise do Fogo, procura explicar essa persistência, falando de três complexos: o de Prometeu (que ele diz ser o Édipo da vida intelectual), de Empédocles e de Novalis. E diz que o fogo liga os dois grandes instintos, o de viver e o de morrer. Cada artista, cada cientista, cada escritor trabalha o fogo ou a sua ausência. É um pirómano em fuga: ladrão do fogo e seu adorador. Por isso, quando perguntaram a Jean Cocteau o que salvaria se a sua casa ardesse, ele respondeu: o fogo.
Assim vai o mundo...
segunda-feira, agosto 04, 2008
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