A crónica sobre as férias do melhor cronista português...
Férias
São, em cada ano, o caminho aberto na floresta fechada dos dias. Amuleto e fetiche, causa das causas e consequência das consequências, tudo o que elas nos dão ou tiram fica inscrito na terra do nosso passado e no céu do nosso futuro. Partimos! Partimos para férias, e nessa partida há uma chegada ao nosso desejo e àquilo em que nele nos mudamos. Partimos para férias, querendo, de nós, levar apenas o que é leve e dúctil, deixando para trás o que é pesado e rígido. Partimos como se nos reerguêssemos da nossa sepultura interior, Lázaros de uma ressurreição solar e sagrada. Partimos para férias, como se elas nos dessem a chave da porta do castelo da infância, aquele onde escondíamos o nosso mundo encantado e os nossos segredos audaciosos. Partimos, e nessa partida há um cansaço descansado, feito de ansiedade de renovação e de memória de alegria.
Agora, fazemos as malas. Pomos nelas as roupas que nos restituem o corpo, qualquer que ele seja. Levamos aí os livros que queremos ler - e os que queremos voltar a não ler, pois, em anos anteriores, já por três vezes os levámos e por três vezes os negámos, não os abrindo. Pomos nelas as pequenas coisas dos grandes momentos e as grandes coisas dos pequenos momentos. Cada mala de férias é um gabinete de amador, uma caixa chinesa, uma "matrioska", um contador indo-português portátil. É uma ordem que, ao fim de uns dias, se transformou em caos. É o retrato instantâneo de uma disposição anunciada e de uma vontade traída. Lá vamos, com o dentro fora de nós e o fora dentro de nós. Vamos e, quando lá chegamos, somos nós que estamos à nossa espera!
As férias são o que são: pé a despegar-se do lodo da vida, mão a afastar o eixo do mundo. São o que são, porque nos dão um outro eu, um outro tempo, um outro espaço. Mesmo para os que ficam onde sempre estão, esse estar é outro. As férias são o fio de Ariadne que nos faz sair do labirinto dos dias e dos lugares habituais. E são o alimento que, anualmente, damos como tributo ao Minotauro para que não nos devore.
Chegamos, finalmente. Olhamos o mundo - ele é o espelho onde nos vemos. Respiramos a vida e o seu sopro selvagem. Estamos mais atentos e mais distraídos. Mais atentos aos fins, mais distraídos dos princípios. As nossas mãos acalmam-se imperceptivelmente, trocam a rapidez pela lentidão, repousam em tudo o que tocam - e há nelas uma música muda. Abrimos as portas, as janelas, os armários, as gavetas. Há sempre coisas a mais ou a menos! Nada cabe onde devia caber. Arrumamos o que trazemos, e tudo fica em equilíbrio instável. Mesmo em férias, o mundo não coincide connosco. Mas aquele vento que corre ao fim da tarde cobre todos os anseios e todos os receios.
Estamos. As férias são o tempo do grande sono. Dorme-se até tarde e dorme-se de tarde. Dorme-se um sono sem fronteiras, sem pressas, sem horas, sem limites. Dorme-se até ao fim do sono - até ao fim do sono em nós, até ao fim de nós no sono.
As férias são o tempo paradoxal da viagem e do amor. Vamos e vimos. Achamos e perdemos. Agarramos e deixamos. Lembramos e esquecemos. São o tempo da viagem do amor e do amor da viagem. São o tempo das ascensões e das quedas, dos ritmos extremos, sem meio: velozes ou vagarosos. São o tempo de um infinito de bolso.
As férias, na praia ou no campo, são um século XIX eterno, o tempo dos impressionistas e da natureza raptada. São o instante e a sua luz, o movimento e a sua paragem, o repouso e o seu silêncio, o mar e o seu brilho, o vento e a sua fuga, o verde e o seu sossego, a árvore e a sua sombra, a água e a sua frescura. São um Musée d'Orsay itinerante, com mais algumas salas da National Gallery e outras do Metropolitan Museum...
As férias são o tempo que se nos entrega a nós para que nos entreguemos a ele. Mas, porque há tempo para nos medirmos, são também, muitas vezes, os dias dos fantasmas, das cisões, das suspeitas, das crises, das saturações. Partimos para vir curados e regressamos ainda mais doentes.
Como quase tudo o que na vida chamamos nosso, as férias caminham para nós e apanham-nos de lado. São a nossa superstição anual. E, às vezes, a nossa obra-prima.
José Manuel dos Santos (in Expresso)
Assim vai o mundo...
sábado, agosto 23, 2008
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