quarta-feira, agosto 19, 2009

O mundo português...

Não são demais as reportagens e homenagens a Raúl Solnado! Desde a Tabu à Actual, passando por esta belíssima crónica de José Manuel dos Santos...

A sua morte faz-me falar da sua vida e da sua arte. No primeiro "Zip Zip", ele entrevistou Almada Negreiros, e esse foi um dos momentos míticos da televisão. O autor da "Cena do Ódio" e do "Manifesto Anti-Dantas" era um homem com um sentido instintivo do espectáculo e sabia fazer a grande afirmação e a grande negação que provocam, espantam, escandalizam. Fazia-o como quem proclama verdades eternas e mentiras lapidares. Naquele lugar e naquele tempo, isso acendia um fogo alastrador, e os aplausos de uma plateia em êxtase acabavam cada frase que ele atirava. Lembro-me da cara maravilhada dos entrevistadores, Raul Solnado e Carlos Cruz, a conversar com um velho senhor vestido de escuro, que falava de si e do mundo, enquanto Fialho Gouveia mostrava quadros seus, que tinham sido levados ao Teatro Villaret. Aqueles entrevistadores estavam perante Almada como se está em frente de um fenómeno, de um monumento, de um caso, de um prodígio.

Almada Negreiros tinha afirmado, num dia feliz, que "a alegria é a coisa mais séria da vida". Solnado concordava com essa afirmação. O seu humor era feito de inteligência, ousadia e responsabilidade. Quando contava uma história, uma anedota, uma piada, havia uma emoção que dava gravidade à graça. Pode afirmar-se que ele foi um cómico do humanismo e que Herman José é um cómico do pós-humanismo. A passagem de Solnado a Herman foi a de um tempo a outro, como antes tinha sucedido com a de António Silva a Solnado. Sem Solnado não teria havido Herman. Ele sabia-o e fez desse saber uma teoria do humor português. Sempre que falava da sua arte, aquele que pôs o país a rir com a "História da Minha Vida" dizia palavras certeiras, aquelas que o mostravam consciente e perspicaz.

Raul Solnado era uma máquina de fazer rir. Mas não se ficava nesse limite. Foi mais exigente consigo e com o público. Conhecia bem o papel que representava num país triste e num tempo fechado. Quando esse tempo abriu, o seu humor acompanhou-o, tornando-se mais claro. Ele nunca usou a sua popularidade para perder a sua independência e nunca a quis para ameaçar a sua liberdade. Essa astúcia tornava-o quase invulnerável. Na rua, Solnado era o rei dela. Quem com ele se cruzava servia-lhe de eco e de espelho. Dizia as suas tiradas com uma voz que imitava a dele, fazia as suas caretas numa cara que parecia a sua. Aristocrata de um humor que ascendia do povo, a ética de Solnado foi sempre a de não deixar desvirtuar ou contrafazer a sua origem. Nunca quis ser facilmente popular, por isso o foi tanto e de forma tão duradoura. E foi-o porque reflectia sem conceder.

O humorista de "A Guerra de 1908" gostava da vida e do que a torna melhor do que é. Interessava-se por tudo e mesmo pelo nada que há no tudo. Tinha um espírito curioso e sagaz. Ganhou uma cultura que não exibia, mas que usava com acerto e imaginação. Conversar com ele era fazer uma viagem por lugares de reconhecimento e de revelação. Estava quase sempre em "estado de graça". Era vivo, irrequieto e descobridor. Gostava daquilo que nos torna melhores do que somos. Dos grandes e dos pequenos prazeres, por exemplo. Gostava de amar, de conversar, de comer. Conhecia os restaurantes, mas também as tascas e tasquinhas, onde isso pode acontecer bem, sem risco nem ruína. Estar com ele à mesa era fazer do jantar um festim.

Nos últimos anos, encontrei-o muitas vezes amargurado - por ele, pelo país (costumava dizer: "Um gajo para fazer qualquer coisa em Portugal tem de ser muito competente") e pelo mundo. Havia nele uma justa rebelião contra os que vivem de impedir os outros de viver. E contra aqueles que ignoram que o hoje não pode existir sem o ontem e que o ontem é muitas vezes o novo amanhã. Mas o seu interesse pela política, quando achava que valia a pena, era intenso e activo. Isso sucedeu há dois anos, e agora outra vez, ao aceitar ser, com energia e entusiasmo, mandatário sénior de António Costa. Amava muito Lisboa e entristecia-se por ela. Olhava-a com ambição (dizia: "Lisboa é uma cidade do caraças!"). Essa exigência não pode desfazer-se com a sua morte - deve aumentar!

Quando, não há muito, escrevi sobre ele, o Raul telefonou-me e ouvi-lhe palavras de uma graça grata. Prometemos encontrar-nos mais pontualmente. Nos últimos tempos, Solnado dizia a quem o encontrava: "Estou tão em baixo!", acentuando com um gesto a fragilidade do seu corpo. Não morreu de riso! No fim, trocou o riso pela tristeza de estar doente. Mas continuava a achar que a alegria é a coisa mais séria da vida.


Assim vai o Mundo...

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