sexta-feira, setembro 05, 2008

O mundo dos jornais...

Mais uma crónica de José Manuel dos Santos...

Borda d'água

Era uma daquelas horas, entre a manhã e a tarde, em que não sabemos bem se, com o dia, ainda ascendemos ou já declinamos. Nessa altura, nas cidades, a "rua europeia" está cheia de gente que, entre o almoço rápido e o regresso lento ao trabalho, compra o que precisa e o que não precisa. As conversas são um vaivém entre o lamento pela vida cara e o júbilo pela compra barata. Então agora que os saldos ainda são mais saldos do que durante todo o ano em que já o são, as conversas escutadas por acaso são uma lista de produtos comprados ao preço da chuva, que, como se sabe, é baixo, porque ninguém a quer, embora faça falta. Eu até costumo afirmar que a chuva é muito keynesiana - investimento público climatérico, injectado para gerar empregos e apoiar a produção de produtos de primeira necessidade. A chuva, digo eu sem querer gerar controvérsia, é como o Estado português: todos dizem mal, mas todos aproveitam...

Num desses momentos em que eu escutava o que não me dizia respeito, mas que passou a fazer logo que o escutei, aquela imigrante veio até mim e, numa língua que era um português remoto ou futuro, pediu para lhe comprar o que me queria vender. Perante a minha indiferença apressada, insistiu, fez-se obstáculo ao meu caminho e começou um choro forçado com o qual falava da fome dos filhos. Nunca sabemos bem se, nestas ocasiões, devemos acreditar no que nos dizem e dar o que nos pedem. Mas eu, quando tenho uma dúvida, dou o benefício dela. Digo para comigo que, se for falso aquilo em que me esforço por acreditar, presto ao menos, com a compra ou com a dádiva, tributo ao talento do actor ou da actriz, arte que admiro por dar à vida uma mentira que a torna mais verdadeira.

A mulher, com um gesto mais exacto do que a voz, aproximava de mim o que queria vender, embora as suas palavras, mal pronunciadas na língua a que Camões deu o vigor da vastidão, não conseguissem ter clareza no que diziam. Nem era preciso! Assim que, parando o passo, acedi em ouvir a sua prece áspera, vi que ela tinha nas mãos, antiquíssimo e idêntico, "O Verdadeiro Almanaque Borda d'Água", agora na edição de 2009. Reconheci-o com a alegria de um reencontro. Paguei o que me pediu - e era mais do que aquilo que vem indicado na capa como preço. Mas não devemos levar o rigor ao ponto em que ele se torna escrúpulo. Sentei-me então num café, dos poucos onde ainda aceitam clientes com tempo, e, encantado, passei uma hora a ler e a desler o que lia. Lembrei-me até de um amigo que, quando estava perante alguém que presumia saber o que não sabia, aplicava um golpe de misericórdia na altiva e estreita auto-suficiência, atirando-lhe: "Tens uma cultura de 'Borda d'Água'."

Era justo, mas malévolo, o meu amigo! Quem nos dera que os ignorantes de hoje tivessem a sabedoria dos ignorantes de ontem, aquela que o almanaque transmite, desde há muitas décadas, no seu calendário de presságios, prevenções, previsões e prudências. Essa simples sabedoria, é-nos, como a terra dos hebreus, prometida logo na capa sob a fórmula eloquente: "Reportório útil a toda a gente contendo todos os dados astronómicos e religiosos e muitas indicações úteis de interesse geral." Assim é! Naquelas folhas lentas e minuciosas, de um design que já foi mau e, por ser o mesmo, agora é bom, se conhecem os feriados civis e religiosos, as festas, feiras e romarias, os oragos, padroeiros, protectores e patronos, as efemérides, lembranças e memórias. Ali, lemos aforismos, adágios, provérbios, rifões e anexins. E temos tudo sobre hortas, jardins e pomares. Ali, aprendemos o que devemos semear, plantar e colher. E quando devemos vacinar, castrar, tosquiar e fazer cobrir os animais. Ali, vemos a que horas o Sol nasce e se põe, qual é a vida da Lua, se há bom ou mau tempo, e qual é o movimento das marés. Ali, há astronomia, astrologia, meteorologia, religião, agronomia, etnografia, história, botânica, zoologia e filosofia para todos. Ali, citam-se Aristóteles, Oscar Wilde, Vinicius de Moraes e António Aleixo. Ali, aprendemos a ganhar o que nos faz falta e a poupar o que nos pode vir a fazer.

Não há viagem mais prevista e inesperada do que esta. Nela, passamos pelo que sabemos e pelo que ignoramos, por aquilo em que acreditamos e por aquilo de que duvidamos, pelo que nos interessa e pelo que nos é indiferente Sabendo que o conselho mais eficaz é o que damos a nós próprios, o almanaque cita Sócrates, acrescentando tratar-se do grego: "Não fiquem adormecidos no sono fácil das ideias feitas." Como a vida, o "Borda d'Água" atravessa os tempos e as alturas, da mais chã à mais elevada. Fala dos "dias vividos e dos dias a viver". Informa que "2009 será dominado por Júpiter e terá um Inverno temperado, uma Primavera ventosa, um Verão aprazível e um Outono chuvoso". Recomenda, para os jardins de Setembro, "semear amores-perfeitos, begónias, cravos, gipsófilas, margaridas, malmequeres, miosótis, papoilas. Plantar bolbos, jacintos, tulipas e narcisos". E afirma que os nativos de Leão, como eu, "no amor, são sedutores e conquistadores." Só por conhecer isto o meu coração se alegrou, na tarde que começava a ser minha...
(in Expresso)

Assim vai o mundo...

4 comentários:

Anónimo disse...

muito boa! como todas que ele escreve!

Shelyak disse...

Tenho andado mais pelo Sol e daí, abandonado um pouco o Expresso. Mas cultura de Borda D'Agua... pois deixem-nos falar... a caravana passa...
Abraço rapaz!
:)

Francisco del Mundo disse...

noivo, não podia concordar mais...
abraço

Francisco del Mundo disse...

shelyak, eu tb compro o Sol, e gosto dos Sentidos da Carla Hilário Quevedo, mas para mim este é o melhor cronista...:D
abraço