quarta-feira, setembro 17, 2008

O mundo dos jornais...

José Manuel dos Santos...

História real

Parecia desenhado a lápis leve na folha branca do dia. Uma fragilidade ascética e uma modéstia distraída sustentavam um conhecimento, uma disciplina e uma coragem. Os seus amigos em religião diziam-no (inspirando-se certamente no que Eça afirmou de Antero) "um sábio que era um santo". Nele, havia esse desprendimento de si que leva ao esquecimento de morrer. E existia uma curiosidade e um amor pelo saber que conduzem à amnésia de viver. Dizia-se que, com um livro na mão, muitas vezes se esquecia de comer.

O padre Manuel Antunes sabia tudo. Nada do que é divino lhe era distante e nada do que é humano lhe era alheio: filosofia e teologia, história e literatura, filologia e mitologia, psicologia e educação, política e sociologia, antropologia e arte. Professor, durante anos, da cadeira de História de Cultura Clássica, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, educou (a paideia era um dos seus grandes temas) milhares de alunos, que o lembravam com respeito e reconhecimento. Diz-se que o árduo trabalho docente lhe fez, da saúde, doença, e lhe tirou tempo para escrever uma obra menos ocasional. Mas o que deixou é vasto e variado. A Obra Completa, em publicação pela Fundação Calouste Gulbenkian, mostra um saber que corria como um rio de muitos afluentes. Aí se pode ver como ele conhecia o ortodoxo e o heterodoxo, o antigo e o contemporâneo. Costumava dizer: "Nada é menos actual do que o jornal desta manhã e nada mais actual do que a Odisseia de Homero". Gostava, socraticamente, de definir conceitos, aclarar palavras, dialogar com os homens e os livros de todos os tempos e todos os espaços. O rigor erudito não o privava do acerto poético e a informação não lhe impedia a imaginação. Falava muitas línguas, antigas e modernas. Religava: relacionava o que era diferente, aproximava o que era distante, revelava o que estava oculto. Analisava e sistematizava. Fazia genealogias e futurologias. Gostava de ideias e de palavras. O seu saber era missionário: fazia girar uma roda de muitos raios em torno de um eixo que era o da sua fé.

Jesuíta de formação tradicional, viveu e acompanhou, ao contrário de outros, a evolução da Companhia de Jesus na segunda metade do século XX. Nele, ficaram as marcas contrárias desse caminho. A voz, a atitude, o traje, o gesto eram clericais. As palavras eram abertas e civis. Mas, se as lermos bem, vemos que nunca se ausenta delas a fidelidade à doutrina e a convicção apologética. Isso estava sempre presente, mesmo nos juízos literários que, não raro, eram contaminados por critérios moralistas.

Vivia na casa da "Brotéria", na Lapa, num ambiente frio e feio (Sophia, sua amiga, fez esse reparo), mas parecia não dar por isso. A beleza que procurava era doutro mundo. Gostava de ter uma voz pública e o seu livro Repensar Portugal, publicado em 1979, no rescaldo do incêndio revolucionário, foi notado e anotado. Conheci-o nesses anos. Parecia ter um corpo sem corpo, apenas a suportar a bondade e o pensamento. Ao conversar-se com ele descobria-se um ângulo escondido das coisas. E tanto nos falava de Sófocles como de Joyce; de Fidias ou de Carpaccio; da Roma imperial como da China de Mao Tse Tung; de Marx ou de Jaeger, de Henri de Lubac ou de Foucault.

A história que conto passou-se nesses tempo. Eu participava na organização de um colóquio que, durante dois dias, falava de cultura e de política. Manuel Antunes era um dos convidados. Como ele, muito distraído, já mal conseguia ocupar-se da vida material (por exemplo, apanhar um táxi), arranjou-se um motorista para o ir buscar e levar, para o assistir e tomar conta dele. De nome Higino, era, como aliás convinha para a sua missão, um homem em tudo contrário ao padre: corpulento, enérgico, seguro, exuberante e decidido. De poucas letras, mas astuto. Desconfiado, de início, gostou depois da sua tarefa de protecção. Falava-me disso, entusiasmado, dizendo "o padre é porreiro". Percebi que aproveitava as viagens para lhe fazer perguntas e dar opiniões. O último dia do colóquio foi o da conferência de Manuel Antunes. Consultando umas notas breves, improvisava, com o seu fio de voz quase a partir-se, e deslumbrava. Referia Platão e Cícero, Montesquieu e Ortega, Espinosa e Hegel. Fazia de cor largas citações em grego e em latim, passando a seguir para o francês, o espanhol e o alemão. Havia na sala um silêncio sorridente e pasmado, sobretudo porque muitos não entendiam o que ele dizia na língua em que o dizia. De pé, eu assistia, fascinado, ao prodígio. Quando se atingia o auge, o Higino aproximou-se de mim, olhou o orador e murmurou-me ao ouvido: "O padre sabe umas coisas disto, mas de história pesca pouco. Ainda agora, no carro, dei-lhe cá uma abada em cognomes de reis...!"

Devo ter feito uma tal cara de espanto que ele a interpretou como de admiração pela sua sabedoria real: D. Afonso II, o Gordo; D. Sancho II, o Capelo; D. Fernando, o Formoso; D. Henrique, o Casto; D. Maria I, a Louca...
(in Expresso)

Assim vai o mundo...

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