segunda-feira, outubro 20, 2008

O mundo das crónicas...

Uma das melhores crónicas de José Manuel dos Santos sobre os chamados novos homens economicus...

Vêem-se naquelas avenidas onde os que se julgam donos do tempo encontraram lugar para dizer uns aos outros que pertencem ao mesmo mundo. Quando a hora se aproxima daquela em que se almoça, descem à rua com os seus fatos (ou blazers) cinzentos e azuis, as camisas com as iniciais bordadas no peito, as gravatas às riscas ou com brasões. Sósias uns dos outros, parecem multiplicados. Agrupam-se por idades e importâncias, nessa marcha hierarquizada, como a de um exército que avança para uma conquista infalível: a do sucesso. Os que chegam imitam os que já lá estão nos tiques, nas frases, nas marcas, nos gostos, nos gestos. Olham para as mesmas montras e têm as mesmas ambições. Mas, como no início de carreira ganham menos, o que parece igual, é diferente: nos casacos de uns, há lã e caxemira, nos de outros, lã e poliéster. Aí vão eles, com o seu andar ritmado e triunfante, emitindo ondas de perfume e falando obsessivamente ao telemóvel.

Já me aconteceu estar perto deles e ouvi-los. Falam pela boca uns dos outros uma linguagem uniforme e só referem coisas que o dinheiro compra. Gostam de verbos como alavancar, implementar, obstaculizar, externalizar, despoletar, posicionar, checkar, feedbackar, colapsar. Dizem o comum do comum e o ínfimo do ínfimo, convencidos de que nas suas bocas está a chave do futuro. Sentem-se a vanguarda do capitalismo, assim, outrora, alguns se sentiram a vanguarda do comunismo.

Não se lhes ouve pronunciar o título de um livro. Conhecem apenas relatórios e powerpoints. Acham que ler, pensar, ouvir, contemplar, saber, esperar é perder tempo, num tempo sem ele. Afinal, na Internet está tudo disponível... Julgam que a criação do mundo coincidiu com a data e a hora do seu nascimento. Não têm memória nem alteridade. Odeiam velhos, pobres, perdedores, pretos, feios, melancólicos e intelectuais, que complicam o que é simples. São homófobos, mas alguns, à terceira bebida, sucumbem ao encanto do corpo musculado do vizinho de ginásio. No fim, telefonam muito aflitos à namorada a dizer que ficaram a fazer serão no escritório. Casam em igrejas barrocas e fazem o copo de água em quintas nos arredores de Lisboa, ou sob tendas onde se repetem as ementas e as caras. Adoram-se e passam horas em frente do espelho a acariciar a face e a ajeitar o nó da gravata. Tomam ansiolíticos e antidepressivos continuamente e em doses crescentes.

Dizem de si que são jovens de elevado potencial e acreditam que, com dinheiro, a juventude lhes será eterna. Estes lobos ávidos confundem informação com sabedoria, interesse com desejo, imagem com visão, alucinação com imaginação. Sofrem de todas as ignorâncias que falseiam a vida. Não sabem que o fracasso é o outro rosto do triunfo, que a doença é a irmã mais próxima da saúde, que o futuro é tão antigo como o passado, que a morte é o segundo nome da vida. Ignoram que o homem não é mortal porque morre, mas morre porque é mortal. Querem-se elegantes, mas desconhecem que o mais elegante dos gestos humanos é aquele com que fazemos passar os outros à nossa frente. São de direita, porque acham que ser isso é ser mais do que os outros. Falam do Valor e do Lucro como os teólogos falam da Graça e da Salvação. Pensam que aquilo em que acreditam é o "horizonte incontornável do nosso tempo". Vorazes, violentos, vis, vaidosos e vazios, são prepotentes com o seu poder e subservientes ao poder dos outros: escravos hoje para poderem ser senhores amanhã.

Agora, andam muito assustados com a crise - e não apenas pelas razões que nos assustam a todos. Para eles, é como se a armada invencível a que pertencem começasse, derrotada, a afundar-se sob um céu vazio de um deus vencido pelo diabo. A hubris gerou a Némesis.

Num destes dias, num restaurante, vi-os. Comiam todos a mesma salada triste de salmão fumado. Tinham olheiras e um brilho sujo no rosto. Os nós das gravatas pareciam gastos, desalinhados e decaídos. O aroma do último perfume que acabava de sair, e que todos usavam, misturava-se ao invencível cheiro a queimado que saía da cozinha. O que balbuciavam sobre o afundamento das bolsas era incompreensível. O temor tornou-os sentimentais. Parecem atingidos por uma morte que os faz fantasmas. Talvez tenham começado a compreender que serão as primeiras vítimas do Minotauro que habita o centro do labirinto que eles ajudaram a construir.


Assim vai o mundo...

4 comentários:

Anónimo disse...

Realmente genial!

Francisco del Mundo disse...

eugénio, bem-vindo! De facto é...:D
Abraço

Anónimo disse...

Hello from America...

Amo ler o que voce escreve, os personagens se tornam reais na minha imaginacao, enfim cada vez que leio algo, viajo.

Francisco del Mundo disse...

anonimo, neste caso os textos não são meus, mas do melhor cronista portugues: José Manuel dos Santos!