segunda-feira, outubro 13, 2008

O mundo dos jornais...

Churchill visto por José Manuel dos Santos...

Acordava às oito horas, tomava o pequeno-almoço (ovos com presunto, perna de galinha, melão, sumo de laranja, café), fumava o primeiro charuto de uma série diária de oito e permanecia na cama a ler e a ditar mensagens à secretária. Às dez, tomava banho e arranjava-se com esmero. Ia então para o gabinete receber pessoas. Depois de beber um ou dois whisky and soda, almoçava, à uma e meia da tarde, com convidados, ou era ele o convidado (do rei, às terças-feiras). Às três, dormia a sesta. Uma hora depois, acordava, tomava de novo banho e mudava de roupa. Às quatro e meia, prosseguia o despacho, fazia reuniões e continuava a receber até às oito e meia. A essa hora, jantava os seus pratos preferidos, acompanhados de champanhe. Às dez, trabalhava mais um pouco, até que, às onze e meia, via um filme ou jogava uma partida de cartas. À uma da manhã, deitava-se. Antes de adormecer, lia jornais ou livros. Este era o dia-padrão de Churchill, quando era primeiro-ministro, mesmo durante a guerra. Só o mudava se os acontecimentos o obrigassem.

Esta agenda sibarita é-nos descrita, acompanhada de algumas peças que a materializavam, no fascinante labirinto que, em Londres, perto do número 10 de Downing Street, dá pelo nome de Churchill Museum and Cabinet War Rooms. Aqui se conserva o subterrâneo que, sob os bombardeamentos, serviu de quartel-general ao Governo durante a II Guerra Mundial. Das mesas às camas, das loiças às roupas, do telefone directo à Casa Branca ao emissor da BBC para falar à Grã-Bretanha e ao Mundo, dos mapas onde a evolução da guerra era seguida, sinalizada e decidida ao aparelho eléctrico que permitia acender cigarros, do quarto de Churchill ao gabinete de trabalho, da sala do Conselho de Ministros à dos chefes militares - ali se apresenta tudo com um rigor e uma autenticidade que nos fazem regressar a esse tempo vivido sobre o abismo. Ali, ouve-se a voz de Churchill, seguem-se os seus passos, os seus gestos, o fumo do seu charuto e o movimento da sua cólera.

A meio deste circuito mítico, existe agora um Museu Churchill, que usa tecnologias sedutoras. Atravessando aquelas imagens, coisas, legendas e memórias, vai-se dos dias da guerra aos da paz, dos da sua morte (com 90 anos) aos do nascimento, dos da infância (estão lá os cadernos e os soldadinhos de chumbo) aos da carreira. Ali estão o aristocrata, o militar, o jornalista, o democrata, o político, o escritor, o pintor amador, o "dandy", o conservador, o rebelde. Estão os fatos, as fardas, as medalhas, os documentos, os objectos, os livros, as fotografias, os filmes que nos devolvem os acontecimentos e o seu rasto, as vitórias e a sua exaltação, as derrotas e a sua ansiedade. Está o mapa duma vida, mostrando o que nela se passou dia a dia, hora a hora - os trabalhos e os prazeres. Está sobretudo o retrato de uma personalidade única, livre e audaciosa - tão humana nas suas qualidades e defeitos, nos talentos e convicções, nas manias e contradições. E quase sobre-humana na sua coragem feliz e indomável! Este retrato é uma das chaves para percebermos o que aconteceu nesse tempo de tantos perigos vencidos. Churchill, com a sua vontade de liberdade e o seu instinto de vida (que se opunha ao instinto de morte de Hitler), foi o "homem com qualidades", o anti-Ulrich de Musil.

Quando recentemente estive em Londres, fiz esta longa travessia pela vida de um político que percebeu, antes dos outros, o "ser" dos totalitarismos, opondo-se ao "espírito" de rendição da época e assegurando a liberdade ao nosso mundo ameaçado. Este museu prova-nos que os grandes homens são capazes, num momento fatal, de saltar sobre o medo do tempo, vendo o dia para além da noite que cresce.

Pouco depois desta visita, ao ler uma biografia de Marcel Proust, reparei que, em 14 de Agosto de 1918, o escritor, que nesse Verão resolveu não ir de férias para Cabourg, foi jantar sozinho ao Hotel Ritz de Paris, do qual era frequentador assíduo e ostensivo. Numa mesa, junto dele, estava Winston Churchill, que ainda não era quem seria. O olhar minucioso e indagador de Proust cruzou-se com o olhar irónico e determinado de Churchill. Nesse encontro de olhares foi como se o século XX dissesse um dos seus nomes.
(in Expresso)

Assim vai o mundo...

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