segunda-feira, julho 28, 2008

O mundo dos jornais...

Belo artigo de João Pereira Coutinho no Expresso...

Água engarrafada

Perguntam-me às vezes qual a principal diferença entre o norte e o sul, entre o Porto e Lisboa. Tenho a vantagem, ou a desvantagem, de viver entre ambas. E respondo sempre uma evidência: água engarrafada. O meu interlocutor não entende a resposta e pede explicações. Eu bocejo, deito-me no sofá, desaperto ligeiramente o cinto que oprime a barriga e começo uma longa prelecção sobre a diferença antropológica entre as duas principais cidades portuguesas sob a perspectiva da água engarrafada. Tudo se resume a experiência pessoal: eu, em casa de amigos lisboetas, solicitando um copo de água para matar a sede. E eles, com a naturalidade típica do sul, abrem a torneira e enchem o copo.

No Porto, este gesto - abrir a torneira e encher o copo para o convidado - seria o suficiente para lançar duas famílias em guerra. Quando um homem do norte pede um copo de água, ele sabe que existe uma diferença entre água da torneira (que serve para cozinhar, tomar banho e alimentar os cães) e água engarrafada (exclusivamente para seres humanos).

Não sei como começou esta profunda divisão; mas um livro recente, escrito por Elizabeth Royte e analisado na última "Economist", talvez dê uma ajuda. Intitula-se, apropriadamente, Bottlemania: How Water Went on Sale and Why We Bought It. Para a autora, uma mistura de snobeira, necessidade e preocupações higiénicas transformou uma indústria inexistente, ou incipiente, num império de lucros florescentes. Depois, e só depois, o capitalismo fez o resto: ainda que a água corrente seja hoje tão bebível como a engarrafada, vender garrafas é mais rentável. Para sermos exactos, uma indústria de 4 mil milhões de dólares em 1997 passou para os 10,8 mil milhões em 2006.

Quando conto esta história aos meus amigos lisboetas, eles dizem que água engarrafada é típica de zonas subdesenvolvidas. Talvez seja. Ou talvez não seja: talvez a preferência pela garrafa seja mais uma confirmação de que o colectivismo do sul não pega no norte burguês e individualista.


Assim vai o mundo...

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