terça-feira, fevereiro 03, 2009

O mundo das crónicas...

Falei ontem do intervalo do Superbowl! A propósito fica esta crónica sobre o Intervalo, do inevitável José Manuel dos Santos...

Intervalo

Quando quero sentir mais leve o peso que, em mim, de mim me pesa, ando pelas ruas da cidade velha porque sei que a tristeza delas é ainda maior que a tristeza minha. Vou andando, ora devagar ora depressa, e, ao olhar o que passa ou o que fica, é de mim que parto mais pesado e é a mim que chego mais leve. Vou andando, com uma imobilidade que se desloca, e vejo e oiço e sinto e penso, assim os animais olham, ouvem, sentem e pensam, excepto naquela parte deles que não existe para o saber.

Ando sob a luz que se vira para dentro e por isso escurece. Ando e sei que ter destino é um erro que não se corrige. Por isso, nos meus passos há todas as certezas que se mudam noutras tão incertas como essas. Ando naquele intervalo entre o que sou ao não ser e o que não sou ao ser. Ando e sei que aqueles que passam e se distraem da sua distracção olhando-me vêem um homem de meia-idade que parece um pouco mais novo do que é, com um andar que procura o seu ritmo e a sua atenção, uma cara que se ausenta do seu sorriso para estar mais de acordo com o anoitecer, um cabelo que começa a não ser só escuro e que cede na sua continuidade. Esses vêem-me sem me conhecer e assim ficam perto de mim, que também não me conheço, nem sequer me vejo passar, senão em imagens de um eu que não sou. Vêem-me, e eu sei que o ver não lhes diz o que vêem. Por isso lhes agrado ou lhes desagrado por razões que são mais deles do que minhas. Ando sob a claridade que começa a ser escuridão e, enquanto as luzes não se acendem, há um hiato entre tudo e o seu contrário, inversão de sinais, reverso de sentidos.

Ando e oiço o que falam os que falam sozinhos ou acompanhados. Oiço as suas palavras inúteis, gastas e repetitivas. Oiço os que dizem apenas o que já ouviram, cópias de um original que nunca foi deles. Oiço os medíocres que dizem a mediocridade dos outros para negarem a sua. Oiço os infelizes que choram a felicidade alheia por saberem que nunca será própria.

Oiço a voz deste tempo que é feita de exclamações baixas, gritos calmos, desesperos mansos, angústias medidas, suicídios mudos. Oiço as vozes que se negam na raiz e que se desmentem no auge. Oiço falar de desemprego, de falência, de ruína, de medo. E fico exposto à interrogação que me pergunta: como é possível não haver nisto o tempo de uma rebelião? Oiço falar de um homem negro que está num gabinete oval e sei que a esperança é uma flor que abre num caule frágil ao vento. Falam dele como de um feiticeiro, de um curandeiro, de um xamã. Falam dele como se fosse um próximo, um parente, um amigo.

Subitamente, passa um gato, e eu olho o seu olhar agudo. Há mais verdade nesse olhar do que no meu, fatigado dela. Há mais alegria nesse olhar do que no nosso, desapossado dela. O gato pára, e a sua hesitação aproxima-o de mim. Depois, corre e desaparece numa esquina esquecida. Nunca mais o verei: morre no meu olhar, mas deixa nele o seu fantasma. Agora, passa uma mulher vestida com roupas velhas que são a única coisa que possui. Anda ao lixo e, da sua boca sem dentes, saem palavras que se ouvem como se fossem a faca que corta ao meio as que o nosso pensamento soletra: "Não há direito, uns com tanto e outros com nada. Ando aqui porque Deus é um cego a quem ninguém dá esmola!"

À porta da igreja fechada, uma rapariga toca flauta no cimo das escadas, e o seu amigo não se importa de a ceder um pouco para ganhar a recompensa que os sustenta. A quem a olha exclama: "Dêem os vossos trocos à flautista, que alegra a rua e alegra a vista." E o som da flauta corre contra mim e empurra-me para o meu passado sem tempo. Lembro o que foi e o que deixou de ser, o que viveu e o que morreu. A rapariga continua na sua beleza triste a tocar: "Só, incessante, um som de flauta chora,/ Viúva, grácil, na escuridão tranquila,/ - Perdida voz que de entre as mais se exila,/ - Festões de som dissimulando a hora" (Camilo Pessanha).

E no céu, que já é outro, a lua abre sobre nós a sua luz deserta.


Assim vai o mundo...

2 comentários:

Anónimo disse...

muito bom!

Francisco del Mundo disse...

Noivo, ele escreve muito bem...
Abraço