quarta-feira, fevereiro 25, 2009

O mundo das crónicas...

A propósito do Carnaval, José Manuel dos Santos...

Se os seres a que chamamos humanos erguessem, sobre as cabeças, uma bandeira que mostrasse o brasão da sua genealogia e da sua condição, a imagem que as simbolizava haveria de ter uma máscara. É que criámos poucas coisas que melhor nos dizem do que esse outro rosto do rosto, onde nos escondemos e mostramos. A máscara, negando-nos, afirma-nos, dizendo o que somos na identidade, no disfarce, na alteridade, na representação, na pseudonomia, na mediação. E na catarse, na transfiguração, no enigma, na possessão, no engano, na ocultação, no rito, no adorno. Por isso, em tudo o que é nosso há máscaras de um rosto encoberto. Divinas ou demoníacas, animais ou vegetais, carnavalescas ou funerárias, marciais ou pacíficas, cómicas ou trágicas, sagradas ou profanas, materiais ou imateriais, as máscaras atravessam a antropologia, a psicanálise, a sociologia, a política, a medicina, a religião, a filosofia, o teatro, a literatura, a pintura, a escultura, a fotografia, o cinema, a dança, a ópera, a banda desenhada, o desporto. E a magia, o humor, o espiritismo, a espionagem, a aventura, o amor, a guerra, o crime.
Fernando Pessoa lembrava que o seu nome vinha da palavra latina persona, que significa máscara. E, ao lembrá-lo, dava uma razão de destino à criação dos heterónimos e à sua multiplicação neles. Mas toda a literatura é a máscara verbal de um rosto em fuga. É um teatro do ser. Os gregos, Shakespeare, Beckett sabiam-no.
Os romances estão também cheios de máscaras. Dom Quixote e Sancho Pança são máscaras um do outro - e nossas. Assim o são Narciso e Goldmundo. Também Bouvard e Pécuchet são máscaras do incessante carnaval da estupidez humana. E a obra de Proust diz-nos que viver é trocar as máscaras do tempo. O seu livro dá ao rosto do narrador a máscara do escritor. E Borges é a máscara de Borges até ao infinito. Na filosofia, para Espinosa, o mundo não é a máscara de Deus? E, para Kant, o fenómeno não é a máscara do númeno?
Na pintura, as máscaras são um rosto. Não precisamos de olhar os quadros cheios de máscaras de Pietro Longhi ou de Picasso para saber isso. Os auto-retratos de Rembrandt são máscaras de um rosto que durou menos do que elas. E, em "As Meninas", que faz Velázquez senão mostrar a máscara da pintura, mostrando o rosto do pintor?
As primeiras imagens do Casanova de Fellini misturam os rostos e as máscaras que fazem o mundo. E que fazem a vida, o amor, a morte. Já imaginaram o que seria a ópera sem máscaras, disfarces, enganos e travestis?
O Carnaval é o grande tempo da máscara, porque é o grande tempo do mundo, antes que venha a Quaresma e a renúncia a ele. Lembro-me dos carnavais da minha infância, com assaltos e cegadas que transformavam a rua num teatro ambulante e as pessoas em personagens (máscaras) de uma peça escrita pelo acaso. E aquele saber selvagem de que "a vida são dois dias e o Carnaval são três" vale mais do que muitos saberes domesticados.
Na escola da minha adolescência, havia um rapaz orgulhoso e feio, com cara de caraça. Todos os dias, quando estávamos sentados à espera que o professor entrasse na aula, havia um colega que exclamava: "Ó João, tira a máscara, que já não estamos no Carnaval!" Ele ria, furioso, mas aquela crueldade assassina, em vez de o diminuir, aumentava-o. Nunca foi, que eu saiba, ao psicanalista. Fez melhor: tornou-se um sedutor de êxito invencível. Perante o seu poder de conquista, a inveja dos outros aumentava-lhes a crueldade. Mas por cada "Ó João, tira a máscara!" que diziam, caíam mais umas tantas raparigas na sua teia, provando que, também no amor, a arte pode mais do que a natureza.
Com a minha memória de máscaras, traço uma linha que passa pelos grandes carnavais. Num extremo dessa linha, está o Carnaval do Rio; no outro, o Carnaval de Veneza. Tão diferentes e tão distantes, não serão eles, afinal, a máscara um do outro? Não será a nudez a máscara da veste e a veste a máscara da nudez? E não será o frio da laguna a máscara do calor do sambódromo? E não será a morte a máscara da vida, que é a máscara da morte? Ao respondermos a estas perguntas, escolhemos uma máscara para o nosso rosto.


Assim vai o mundo...

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