sexta-feira, fevereiro 13, 2009

O mundo dos jornais...

O José Manuel dos Santos escreve como eu, mas "em bom"...

Ela

Era no tempo em que havia tempo para o ter. Então, os cafés eram salas de conversa, de observação, de escuta. Falava-se de tudo, e nesse tudo de que se falava estava mesmo aquilo de que não se podia falar. No Café Monte Carlo, havia mesas para todas as tribos: escritores, pintores, actores, jornalistas, médicos, advogados, voyeurs de vários voyeurismos. Numa delas, costumava sentar-se a Laura Alves com as amigas. Toda a sua vida decorria no Saldanha. Morava na Avenida Praia da Vitória, representava no Teatro Monumental e frequentava o Monte Carlo.

Como Vivien Leigh em "The Roman Spring of Mrs. Stone", aparecia escondida atrás de uns óculos escuros que ainda mais a mostravam. Fora do palco, era frágil e fugidia. No palco, era uma força da natureza - intuitiva, infatigável, exuberante. Tinha um talento popular: peça onde entrasse era êxito garantido. Era casada com o quase único empresário teatral de um tempo em que tudo era único, Vasco Morgado, que financiava com os grandes êxitos dela os muitos fracassos dele. A actriz teve uma carreira constante e diversa: fez tudo, o bom e o mau. Mas mesmo o mau fazia bem. Após o 25 de Abril, dedicou-se ao espiritismo - até ao espiritismo político. Acabou desvairada e dizem que a demolição do Monumental foi um golpe que lhe aumentou o desvario. Era então vista, quando a noite crescia, entre as ruínas do teatro, a recitar tiradas de peças que aí tinha representado.

Nos tempos de glória, entre as senhoras que se sentavam à sua mesa do Monte Carlo, havia uma que presumia ser mais do que as outras. E notava-se! Logo que uma delas aparecia com um casaco novo, ela exclamava: "Que graça! Tenho um casaco assim, mas em bom." As amigas ouviam-na e calavam a fúria. Num outro dia, quando alguma contava que o filho entrara num colégio, ela dizia: "O meu filho anda também num colégio parecido, mas em bom." E mal uma comunicava às outras, orgulhosa, que o marido a tinha levado a jantar a um restaurante, ela comentava: "Também fui recentemente jantar fora, mas a um restaurante em bom."

Tanto isto disse que, antes de abrir a boca, as outras já sabiam o isto que ela ia dizer. E como a repetição, se nos cansa, também nos torna indiferentes, ninguém se importava já com aquelas manifestações de altivez. Passaram mesmo a ser ouvidas como uma marca de estilo, um sinal de coerência, uma prova de vida. Os anos foram assim passando como um rio sereno e continuava a ser rara a tarde em que ela não submetia alguém à comparação humilhante de ser ou de ter em mau o que ela era ou tinha em bom. Mas uma coisa é suportarmos a humilhação; outra, bem diferente, é renunciarmos à oportunidade de nos vingarmos dela. E foi isso que aconteceu.

Uma tarde amena de Primavera, em que a luz de Lisboa parecia ainda mais acesa do que a alegria nos olhos dos que a viam, ela entrou no café como se, em vez desse tempo doce, um temporal se abatesse sobre a cidade. O cabelo vinha revolto; a roupa, desalinhada; a maquilhagem, desbotada; o olhar, desorbitado; a voz, esganiçada. Contou que não tinha dormido - estava a enlouquecer. Atirou-se para uma cadeira, começou a lamentar-se amargamente e, depois de as amigas a terem acalmado, contou-lhes que o marido a tinha trocado por outra. "Por quem?", perguntaram-lhe em uníssono, curiosas e perversas. Ela apenas sabia que a tal outra era nova, pois conhecia-a de vista - mas mesmo assim lá a foi difamando como pôde. E, com os punhos erguidos, ameaçou: "Isto não fica assim!"

As amigas ouviam-na, com uma mistura de pena e contentamento, cuja proporção variava ao ritmo das inflexões de lamento e fúria que ela ia pondo na voz. Foi então que a Laura Alves disse o que todas estavam a pensar. Olhou a desgraçada com uma altivez simétrica daquela com que, no grande tempo, ela as costumava fitar, demorou a pausa que lhe antecedeu a fala como se estivesse em palco a representar e atirou-lhe: "Não te zangues, querida. Afinal, o teu marido limitou-se a trocar-te por uma mulher assim como tu, mas em bom!" A desgraçada escutou, surpreendida, aquelas palavras que pareciam sair da sua boca. Levantou-se e, alucinada, começou a repeti-las como num eco: "Em bom! Em bom! Em bom!" Depois, correu para a rua e desapareceu, ainda a repeti-las. Nunca mais foi vista no Saldanha...(ACTUAL)


Assim vai o mundo...

2 comentários:

Maria disse...

Escreve "em bom" mas não é "todo bom" como tu ^-^


beijos e boa semana

Francisco del Mundo disse...

Maria, it goes back to you...;)
Beijo