quinta-feira, fevereiro 01, 2007

O mundo do referendo...

Gosto de ir ouvindo algumas vozes sensatas no meio deste debate insane. Esta figura juridica do "crime sem pena" pode não ser a mais correcta neste caso, mas tem um certo grau de adequação a sua existencia.

Crime sem pena
Manuela Eanes


"AQUANDO do referendo sobre o aborto, em 1998, escrevi na Revista do EXPRESSO, de 26 de Junho, um artigo, cujo título era exactamente o mesmo - «Crime sem Pena».

Hoje, que esta questão, socialmente preocupante, volta, de novo, à discussão, sinto ser meu dever, como cidadã, reiterar o que então afirmei, e recentemente tive oportunidade de desenvolver, num debate sobre o aborto, no programa Conselho de Estado, no Canal 2, a 28 de Janeiro último. Gostaria, assim, de contribuir para um debate que, julgo, deverá ser sereno e tolerante, claro e objectivo, pois só desta forma se poderão percepcionar as diferentes questões em causa - questões que envolvem a mãe, o pai, o feto, as suas emoções, a sua liberdade, as suas condições de vida, as suas convicções, os seus projectos para a vida - e definir o enquadramento legal em que tais questões se colocam.

Voltando, pois, de novo, às reflexões fundamentais que tenho defendido, penso que se trata de um problema em que todos empenhadamente nos devemos envolver e resolver com urgência e, dadas as implicações sociais e ético-religiosas, solucioná-lo com prudência, em espírito de diálogo.

Deve, pois, discutir-se, desapaixonadamente, sem radicalismos, procurando o melhor caminho, que não divida nem crispe a sociedade portuguesa e respeite valores fundamentais, como o direito à vida, mas, também, o respeito e uma profunda solidariedade, especialmente com as mulheres que, mal informadas, e sofrendo, dolorosamente, em condições de vida degradantes, fazem um aborto.

Com essas mulheres e com todos os que sofrem devemos sempre estar em profunda solidariedade, em coerência total com um dos valores fundamentais que dão verdadeira dimensão à vida - o sentido do outro. No dizer de Mounier, só existimos quando existimos para os outros.

Importa, antes de mais, repetir que, em minha convicção, o aborto é sempre um atentado à vida de uma pessoa não-nascida, a destruição de uma vida, com a sua inviolável dignidade; «un petit dieu», no dizer de Leibnitz, que vai realizar, através do valor sagrado da vida, um projecto pessoal de futuro, sempre diferente, único e irrepetível.

Respeitar outra pessoa como se pretende ser respeitado é a base ética de toda a vida. Aniquilar uma vida humana, mesmo que em fase intra-uterina, é, em minha opinião, uma acção que não pode deixar de ser condenada.

Mas, ao falarmos do direito do feto à vida, não podemos esquecer os direitos da mulher, da mãe. No entanto, invocar a liberdade da mãe é um argumento pouco razoável porque não podemos esquecer que a mãe é apenas a guardiã da nova vida e grande responsável por ela. A mãe não é dona desse ser humano que está no seu ventre. Esse novo ser, essa nova pessoa é seu filho. Não seu escravo.

Como tal, importa considerar a mulher que efectivamente pratica o aborto, a mulher que continua a sofrer marcas profundas no seu corpo e no seu espírito, a mulher que, em situações económicas e sociais dificílimas, recorre ao aborto clandestino. Mas não é através da legalização do aborto que se poderão alterar as suas condições de vida. A questão tem de ser colocada, antes de mais, na melhoria do seu bem-estar e num planeamento familiar correcto, que evite uma gravidez indesejada. Também nesta situação, como afirma Cesare Beccaria - já no século XVIII - «mais vale prevenir os delitos que puni-los. Este é o principal objectivo de qualquer boa legislação».

Penso, ainda, que, perante o propósito de a mulher abortar, deveria ser obrigatória uma entrevista com a mãe e o pai - e não apenas com a mãe - com técnicos de saúde. O planeamento de um filho deverá ser, cada vez mais, um projecto de um casal, e não um acontecimento fortuito, uma situação com que a mulher, individualmente, se depara. Deveriam ser obrigatórias, também, nestes casos, consultas de planeamento familiar, para o futuro.

O que importa, assim, não serão campanhas intolerantes, mas antes o esclarecimento sério de todas as questões e medidas muito concretas, desde um planeamento familiar correcto e empenhado, até uma educação sexual sã, sem tabus, aberta, e que chegue a todos os jovens adolescentes, sem limites de idade, desfasados do nosso tempo e da realidade social. Educação sexual ligada à saúde e à afectividade, que seja repensada e comunicada de forma eficiente. Mais apoio às mães solteiras, e em risco. Continuação da dinamização de todo o processo relativo à adopção. E uma verdadeira política global de apoio à criança, ao jovem e à família, nomeadamente quanto à habitação, emprego e fiscalidade.

Uma questão que, no debate do aborto, tem necessariamente de ser equacionada é como enquadrá-lo juridicamente.

Creio que todos somos poucos - partidos, movimentos cívicos e pessoas de diferentes formações, numa sociedade civil responsável - para reflectirmos sobre o caminho que, simultaneamente, respeite o direito à vida, à dignidade da mulher e os direitos do feto.

Sou pela repreensibilidade social e legal do aborto, pela sua tipificação legal como acto injusto, ou seja, pela sua criminalização, mas sou, também, em obediência às minhas convicções e à aceitação da realidade social, contra a penalização da mulher que recorreu ao aborto. Pensando na mulher que aborta, no seu drama e sofrimento, e na sua saúde, sou ainda pela penalização de quem executa o aborto, apenas com fins lucrativos, sem o mínimo de preparação técnica e condições suficientes.

Penso que, conjugando imaginação jurídica e vontade política, com adequada preocupação social, se poderá encontrar uma solução que, contemplando as questões éticas e morais, dote o nosso sistema penal de uma figura jurídica que criminalize o aborto, mas despenalize a mulher.

Aliás, a história é fértil em exemplos deste tipo, como exemplificativamente atesta o prof. António Hespanha, que refere a solução imaginativa encontrada na Idade Média, e que perdurou até ao século XVIII, para problemas que, como este, têm difícil resolução - a chamada «pena arbitrária», pena cuja medida estava na avaliação, por cada juiz, de uma situação concreta, tentando conciliar, naturalmente, a justiça e a misericórdia.

No artigo publicado no EXPRESSO em 1998, apresentei a sugestão, que me foi aventada em 1984 aquando da discussão da lei actual, pelo saudoso homem íntegro e grande jurista Salgado Zenha, que lembrava, a propósito, o direito romano, que contemplava o «crime sem pena».

Interessante é, também, referir, no direito brasileiro, em polémicas recentes sobre o aborto, nomeadamente a propósito do artº128 do Código Penal, a figura do «crime sem pena»: «Não há pena sem crime, mas pode haver crime sem pena».

Recentemente, o prof. Freitas do Amaral fala na figura do «estado de necessidade desculpante», e refere o Artigo 35º do Código Penal.

Não irei, obviamente, dar qualquer contributo neste sentido, por haver juristas com maior competência nesta matéria. Entendo, apenas, que está aberta uma via de solução para um diálogo mais tolerante, como sugerem vários membros da Igreja e pessoas de diferentes quadrantes políticos. Uma via de solução que defenda o direito inalienável à vida, mas que, simultaneamente, seja adequada à realidade actual, que permita caminhar para um mundo melhor, e mais justo.

Como diz o poeta António Machado, «Caminheiro não há caminho. Faz-se o caminho caminhando».

Porque a criança, mesmo antes de nascer, tem direito a ser amada. Tem direito a ser desejada. E os filhos têm de ser filhos do amor, numa maternidade e paternidade responsáveis."
in Expresso

Assim vai o mundo...

1 comentário:

ivamarle disse...

desculpa lá, mas tem de ficar para outro dia, os meus olhos estão uma lástima...