quinta-feira, março 16, 2006

Viva o Norte...

O texto é de Miguel Esteves Cardoso (se não for peço desculpa), mas decidi transcrevê-lo por causa do tema...

"Primeiro, as verdades. O Norte é mais Português que Portugal.
As minhotas são as raparigas mais bonitas do País. O Minho é a
nossa província mais estragada e continua a ser a mais bela. As festas da
Nossa Senhora da Agonia são as maiores e mais impressionantes que já se
viram.

Viana do Castelo é uma cidade clara. Não esconde nada. Não há
uma Viana secreta. Não há outra Viana do lado de lá. Em Viana do Castelo
está tudo à vista. A luz mostra tudo o que há para ver. É uma cidade
verde-branca. Verde-rio e verde-mar, mas branca. Em Agosto até o verde mais
escuro, que se vê nas árvores antigas do Monte de Santa Luzia, parece
tornar-se branco ao olhar. Até o granito das casas. Mais verdades. No Norte
a comida é melhor. O vinho é melhor. O serviço é melhor. Os preços são mais
baixos. Não é difícil entrar ao calhas numa taberna, comer muito bem e pagar
uma ninharia. Estas são as verdades do Norte de Portugal. Mas
há uma verdade maior. É que só o Norte existe. O Sul não existe. As partes
mais bonitas de Portugal, o Alentejo, os Açores, a Madeira, Lisboa, et
caetera, existem sozinhas. O Sul é solto. Não se junta. Não se diz que se é
do Sul como se diz que se é do Norte. No Norte dizem-se e orgulham-se de se
dizer nortenhos. Quem é que se identifica como sulista? No Norte, as pessoas
falam mais no Norte do que todos os portugueses juntos falam de Portugal
inteiro.

Os nortenhos não falam do Norte como se o Norte fosse um segundo
país. Não haja enganos. Não falam do Norte para separá-lo de Portugal. Falam
do Norte apenas para separá-lo do resto de Portugal. Para um nortenho, há o
Norte e há o Resto. É a soma de um e de outro que constitui Portugal. Mas o
Norte é onde Portugal começa. Depois do Norte, Portugal limita-se a
continuar, a correr por ali abaixo. Deus nos livre, mas se se perdesse o
resto do país e só ficasse o Norte, Portugal continuaria a existir. Como
país inteiro. Pátria mesmo, por muito pequenina. No Norte. Em contrapartida,
sem o Norte, Portugal seria uma mera região da Europa. Mais ou menos
peninsular, ou insular. É esta a verdade. Lisboa é bonita e estranha mas é
apenas uma cidade. O Alentejo é especial mas ibérico, a Madeira é
encantadora mas inglesa e os Açores são um caso à parte.

Em qualquer caso, os lisboetas não falam nem no Centro nem no
Sul - falam em Lisboa. Os alentejanos nem sequer falam do Algarve - falam do
Alentejo. As ilhas falam em si mesmas e naquela entidade incompreensível a
que chamam, qual hipermercado de mil misturadas, Continente.

No Norte, Portugal tira de si a sua ideia e ganha corpo. Está
muito estragado, mas é um estragado português, semi-arrependido, como quem
não quer a coisa. O Norte cheira a dinheiro e a alecrim. O asseio não é
asséptico - cheira a cunhas, a conhecimentos e a arranjinho. Tem esse
defeito e essa verdade. Em contrapartida, a conservação fantástica de
(algum) Alentejo é impecável, porque os alentejanos são mais frios e
conservadores (menos portugueses) nessas coisas.

O Norte é feminino. O Minho é uma menina. Tem a doçura agreste,
a timidez insolente da mulher portuguesa. Como um brinco doirado que luz
numa orelha pequenina, o Norte dá nas vistas sem se dar por isso.

As raparigas do Norte têm belezas perigosas, olhos
verdes-impossíveis, daqueles em que os versos, desde o dia em que nascem, se
põem a escrever-se sozinhos. Têm o ar de quem pertence a si própria. Andam
de mãos nas ancas. Olham de frente. Pensam em tudo e dizem tudo o que
pensam. Confiam, mas não dão confiança. Olho para as raparigas do meu país e
acho-as bonitas e honradas, graciosas sem estarem para brincadeiras, bonitas
sem serem belas, erguidas pelo nariz, seguras pelo queixo, aprumadas, mas
sem vaidade. Acho-as verdadeiras. Acredito nelas. Gosto da vergonha delas,
da maneira como coram quando se lhes fala e da maneira como podem puxar de
um estalo ou de uma panela, quando se lhes falta ao respeito.

Gosto das pequeninas, com o cabelo puxado atrás das orelhas, e
das velhas, de carrapito perfeito, que têm os olhos endurecidos de quem
passou a vida a cuidar dos outros. Gosto dos brincos, dos sapatos, das
saias. Gosto das burguesas, vestidas à maneira, de braço enlaçado nos
homens. Fazem-me todas medo, na maneira calada como conduzem as cerimónias e
os maridos, mas gosto delas. São mulheres que possuem; são mulheres que
pertencem.

As mulheres do Norte deveriam mandar neste país. Têm o ar de que
sabem o que estão a fazer. Em Viana, durante as festas, são as senhoras em
toda a parte. Numa procissão, numa barraca de feira, numa taberna, são elas
que decidem silenciosamente. Trabalham três vezes mais que os homens e não
lhes dão importância especial. Só descomposturas, e mimos, e carinhos. O
Norte é a nossa verdade. Ao princípio irritava-me que todos os nortenhos
tivessem tanto orgulho no Norte, porque me parecia que o orgulho era
aleatório. Gostavam do Norte só porque eram do Norte. Assim também eu.
Ansiava por encontrar um nortenho que preferisse Coimbra ou o Algarve, da
maneira que eu, lisboeta, prefiro o Norte. Afinal, Portugal é um caso muito
sério e compete a cada português escolher, de cabeça fria e coração quente,
os seus pedaços e pormenores.

Depois percebi. Os nortenhos, antes de nascer, já escolheram. Já
nascem escolhidos. Não escolhem a terra onde nascem, seja Ponte de Lima ou
Amarante, e apesar de as defenderem acerrimamente, põem acima dessas terras
a terra maior que é o 'O Norte'. Defendem o 'Norte' em Portugal como os
Portugueses haviam de defender Portugal no mundo.

Este sacrifício colectivo, em que cada um adia a sua pertença
particular - o nome da sua terrinha - para poder pertencer a uma terra
maior, é comovente. No Porto, dizem que as pessoas de Viana são melhores do
que as do Porto. Em Viana, dizem que as festas de Viana não são tão
autênticas como as de Ponte de Lima.

Em Ponte de Lima dizem que a vila de Amarante ainda é mais
bonita. O Norte não tem nome próprio. Se o tem não o diz. Quem sabe se é
mais Minho ou Trás-os-Montes, se é litoral ou interior, português ou galego?
Parece vago.
Mas não é. Basta olhar para aquelas caras e para aquelas casas,
para as árvores, para os muros, ouvir aquelas vozes, sentir aquelas mãos em
cima de nós, com a terra a tremer de tanto tambor e o céu em fogo, para
adivinhar.

O nome do Norte é Portugal. Portugal, como nome de terra, como
nome de nós todos, é um nome do Norte. Não é só o nome do Porto. É a maneira
que têm de dizer 'Portugal' e 'Portugueses'. No Norte dizem-no a toda a
hora, com a maior das naturalidades. Sem complexos e sem patrioteirismos.
Como se fosse só um nome. Como 'Norte'. Como se fosse assim que chamassem
uns pelos outros. Porque é que não é assim que nos chamamos todos?"

Sabem, dá um saborzinho especial que seja um lisboeta a escrever isto...

Assim vai o (norte do) mundo...

3 comentários:

Anónimo disse...

tsss tssss esse senhor fala porque de certeza nunca se deparou com nenhuma açoreana :)

Lúcia disse...

uau... adorei.
quase parece impossível: um lisboeta a falar e bem, do norte.
quem aqui vive sabe que aquelas palavras são verdadeirs.
ser do norte é bom!

Francisco del Mundo disse...

Woochi, o senhor tem razão, mas ta,bém é verdade que um nortenho como eu pode descobrir a beleza das ilhas...:) Ou da minha ilha!;)

Lima, verdade verdadinha... O senhor subiu na minha consideração com estas palavras...