quarta-feira, maio 18, 2005

Mestre...

Olá, mestre! Bem sei que há muito não conversava contigo mas outros afazeres me tem afastado deste meu prazer secreto. Sabes onde estou? Sentado num banco de jardim no Miradouro de Santa Luzia. Soube há dias que o teu próximo livro se passará aqui em Lisboa... Apesar de não ser adepto de capitais, fico contente que tenhas escolhido o meu país como próximo destino das tuas futuras personagens...
Parei aqui porque achei a vista linda! Um daqueles jardins típicos com uma qualquer estátua, alguns bancos de madeira e uma varanda debruçada sobre o Tejo... Sento-me calmamente e decido ler. É Hemingway que me acompanha, mais o seu "Velho". Sim, já o deveria ter lido, mas fui anárquico nas minhas leituras, e só agora encontro alguns clássicos. Enquanto acompanho a saga de Santiago e seu peixe, vou sendo interrompido por personagens quotidianas. Chega um grupo de estudantes italianos... Sou obrigado a parar a leitura e a dar-lhes atenção. Primeiro, porque tenho curiosidade em ver as reacções de alguém tão jovem em visita a um local novo. Só tive até hoje a experiência contrária, de ser eu a tentar apreender tudo ao mesmo tempo, e revejo-me naquela ambiguidade de querer conhecer mas também me distrair com os meus companheiros de viagem. E segundo, porque sinto saudade de estar num local em que a língua italiana inunda tudo com os seus sons abertos e vibrantes. Que saudades de outros tempos e vivências. Enfim, o grupo vai embora e posso voltar ao "Mar"...
O sol está forte e sou obrigado a deitar-me para proteger a cabeça. Mais turistas: espanhóis, alemães, nórdicos... As línguas confundem-se! Levanto os olhos e encontro uma velhinha e uma criança especial. Especial porquê? Porque sofre do Sindroma de Down e vê o mundo de forma diferente. Recuso-me a chamar-lhe deficiente e muito menos atrasado, apenas especial. Sei que se ela pudesse escolheria ver o mundo como nós o vemos, mas não aconteceu. Sinto alguma tristeza e não consigo evitar que os olhos vacilem, não porque tenho pena mas porque não sabemos dar valor à sorte que temos. Espero que ela seja feliz ou que encontre a felicidade no seu mundo...
Uma rapariga da minha idade senta-se no banco ao lado. Parece, tal como eu, querer aproveitar o sol quente da tarde. Tem um rosto suave, com uma tristeza inerente, e agora que inclina a cabeça para trás, parece deitar-se a um certo abandono. Um miúdo com poucos anos pára a observá-la ao pé dela. Ela nota e brinca com ele. Volto a olhar a anciã e a a criança a dar de comer aos pombos... Pouco depois a mãe do miúdo, uns metros afastada a fumar um charro com as amigas, dá contas que o perdeu de vista um minuto a mais. Nem eu nem a rapariga do banco ao lado vimos para onde ele foi e trocamos um rápido olhar de receio. O pai, ou namorado ou simples amigo, começa a procurá-lo e logo o encontra dentro da igreja da praceta. "Foste à missa?", pergunta em tom jocoso! Logo a mãe o agarra e diz "Tens de ter cuidado. Andam aí estrangeiros que pegam em ti e nunca mais me vês! E depois choras...". Fico com estas palavras na cabeça durante algum tempo... O medo que o estrangeiro leve a criança! Será exagerado ou real? Já ouvimos histórias e creio que o caso se possa dar, mas assim tão próximo... Parece-me irreal mas asssustador... Ainda bem que tudo correu pelo melhor...
A rapariga levantou-se e passa à minha frente devagar. É baixa e desliza em passadas lânguidas. Não consigo determinar se é bonita ou feia, mas é isso que a torna atraente. Foi sentar-se na varanda para melhor ver o rio...
Quatro velhotes vêem o desenho em azulejo na parede exterior da igreja. Com certeza já o viram inúmeras vezes, mas o retrato de um Lisboa antiga, anterior a eles, fascina-os! Imagino que lhes faça bem ver, por vezes, algo mais antigo que eles. De modo a que o tempo lhes pareça menos cáustico e que se dê importância ao que já passou. A lei do tempo é implacável, mestre! Para todos...
Um casal de namorados chega e sentam-se abraçados para que o tempo congele esse momento de felicidade. Em parte conseguem pois a simplicidade do gesto o permite!
Agora, está tudo sossegado e deito um último olhar à "minha" criança especial, emociono-me e continuo a ler...

Assim vai o mundo...

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